(…cont.)
Em “Do Princípio e da Água” encontramos a história de um casal que vai para os Açores passar a lua de mel. Lira, a protagonista, é açoriana e mostra ao seu marido, mais velho do que ela, o arquipélago. O marido experimenta um conhecimento profundo da vida e da natureza, uma regeneração e um renascimento através da contemplação das ilhas e da sua relação com Lira. O segundo conto, “Algo como um regresso a casa”, narra a primeira experiência açoriana de Benvinda, uma mulher cega que vai conhecer a terra natal do marido e que aporta às ilhas a sua própria poesia interior.
Portanto, em ambas as narrações encontramos a descoberta para os cônjuges que não conheciam o arquipélago e o regresso à terra natal das personagens açorianas.
Em “Do Princípio e da Água”, a narração é altamente poética mostrando as ilhas e as suas gentes como lugares e seres encantados, aparecem assim os deuses, as sereias, os anjos e o diabo, as fadas, as montanhas sagradas, as brumas, o arquipélago como o princípio do mundo, a magia da toponímia açoriana. Até a chegada aos Açores é descrita como um acto mágico para o qual o viajante deve estar preparado:
é sempre preciso subir muito acima do tempo, vogar no limbo que transpõe o esquecimento e que nos leva ao início e à fruição de toda a memória. […] Deve-se pois pedir um esforço à mente e ao coração: um sentir de alma que nos devolva o tempo sagrado, o livro e o espírito da criação (44)
As referências às paisagens e às sensações provocadas pela natureza são constantes. Assim, e sem sermos exautivos, encontramos as cores da terra açoriana: “imenso mar cor de cisne” (48), “este mar umas vezes branco, outras azul de cisne ou espalhado sobre o chumbo e a sombra dos verdes prados em contraste com o ocre das grandes e pequenas casas dos Açores” (55), “imenso e branco mar” (64), “sortilégio do azul marítimo […] [do] branco das casas e [do] verde muito denso da paisagem” (49-50) “manhã parda” (48), “a vida era verde, azul, branca e de um rosado matinal” (50) “e por detrás da Horta, um Faial azul de hortênsias, e os cerros e os muros, e as vacas minúsculas com seus dorsos pontuando a negro e branco o verde e a púrpura da paisagem” (52), “As vastas terras planas, muradas a um negro carregado, como de hulha” (55). Há referências, entre outras, à “planície celeste” da Ribeira Grande, na Ilha de São Miguel, às flores “cor dos telhados” e ao verde das fajãs da Ilha de São Jorge (54), assim como às “flores amarelas de conteiras” (59) “às cores da hortênsia” (62), às “negras pedras do mar” (60) e aos “tons da laranja, as formações avermelhadas das nuvens” (64).
Os sons também aparecem no conto: estão os sinos (54), “os latidos de um cão” (54), “a sonatina do mar” (55) “o som da água perpétua e infinita do mar”, dando uma especial relevância ao silêncio: “ouvia [o silêncio] suspenso das nuvens que cortavam a montanha” (49), um silêncio “que vem do mar”(53) também presente “na forma dos vasos e dos búzios, vindo do fundo do mar, do susurro dos peixes que nadavam nos tanques, e do murmúrio das gárgulas cobertas de musgo” (50).
E os cheiros: o cheiro americano do vento no Corvo “espalha em torno deste penacho disfarçado de ilha uma espécie de fragrância de naftalina” (53), o “ácido e o enxofre” das Furnas (57), a fragrância das tangerinas (57).
O segundo conto, “Algo como um regresso a casa”, é muito mais breve. O que é especialmente interessante neste texto é a descrição da primeira percepção dos Açores da personagem cega, Benvinda, logo à chegada ao aeroporto da ilha, através do que ela chama “o jogo de ver”. A captação dos cheiros, dos sons, mais a sua aportação imaginativa criam uma peculiar visão do primeiro encontro com o arquipélago. Desta forma, quando o avião aterra e abre as portas Benvinda nota um odor no qual “reconhece de pronto o mistério e o salitre do mar” (60). E pensa que “não pode haver um cheiro mais óbvio do que este numa ilha. Salitre” (60), cheira também a “fragrância do mar” (63).
Os sons também adquirem relevância para Benvinda: o português falado nos Açores é definido como “uma mistura de francês moderno com prosa portuguesa do século XVI” (60). Da mesma forma que acontecia em “Do Princípio e da Água”, encontramos outra vez o silêncio da terra como forma de harmonia (63).
As cores da ilha comovem Manuel, o marido, depois de muitos anos de ausência: “verdes colinas” “paisagem que inspira melancolia” (62) “o verde da paisagem cercada pelo azul do mar” (63).
Benvinda, liricamente, passa todas estas percepções da ilha pelo seu filtro pessoal e consegue ver no seu interior a bela imagem dos lanjarais no mar açoriano.
Assim, é este um breve percurso por dois contos do escritor português João de Melo nos quais existe um intenso apelo sensorial que dota o leitor das imagens mentais necessárias para fundar também uma (outra) cartografia pessoal das ilhas.
Referências bibliográficas
Melo, João de (1983/1987) O Meu Mundo não é deste Reino. Lisboa, D. Quixote
———– (1984/2001) Autópsia de um Mar de Ruínas. Lisboa, D. Quixote
———– (1987) Entre Pássaro e Anjo. Lisboa, D.Quixote
———– (1988) Gente Feliz com Lágrimas.Lisboa, D. Quixote
———– (1994) Bem-Aventuranças. Lisboa, D.Quixote
———– (1996) Dicionário de Paixões. Lisboa, D.Quixote
———– (2000) Açores, O Segredo das Ilhas. Lisboa, D.Quixote
Nota
A investigação para este artigo foi financiada pelo projecto de investigação SA/082A07 da Junta de Castilla y León.
Abril 29, 2009