Donde viria a predilecção do madeirense pelo fogo de artifício ? Tornou-se vulgar o espectáculo sempre fascinante duma chuva de estrelas coloridas sobre a ilha. Em qualquer ponto da montanha, onde haja uma capelinha; em todos os sítios que se avistam da estrada,—lá estão, de quando em quando, os renques de lâmpadas a assinalar a festa, que nem chegamos a saber qual seja. E, dum momento para outro, sobem na escuridão as girândolas luminosas, como se fizessem parte da noite madeirense.
Mas o grande deslumbramento é a passagem do ano, quando o maravilhoso anfiteatro do Funchal se incendeia de estrelas de mil cores e das encostas sobem jogos de fogo
alucinantes. Dir-se-ia a evocação poética das labaredas que há cinco séculos lhe
destruíram o arvoredo. Enche-se a atmosfera dos silvos das sereias e do buzinar dos
automóveis, mas o fogo domina tudo e cria a exaltação colectiva dos acontecimentos
excepcionais. Vista do mar, naquela hora, a Madeira é uma floresta de luz multicolor a
flutuar no Oceano. Uma realidade fabulosa e efémera ! Contemplada da cidade, a baía,
toda ela reflexos prodigiosos, com as silhuetas dos navios a refulgir, é outro sonho
visível, réplica do mar ao espectáculo fantasmagórico da terra.
Para o madeirense, a festa do fim do ano é a conclusão natural das Festas—o Natal—
que toda a ilha celebra com entusiasmo e amor. Não há casa, por muito pobre que seja,
onde o Natal não seja assinalado por uma limpeza maior, um arranjo mais cuidado, uma
«lapinha» ou, simplesmente, a imagem do Menino Jesus exposta sobre a cómoda ou
sobre a mesa e rodeada de flores e de «alegra-campo», de mistura com todos os objectos a que se atribua um valor decorativo.
É, todavia, no Funchal que as Festas assumem o seu esplendor máximo: na animação das ruas, desde semanas antes; na especial decoração das montras; no fulgor da iluminação, intensificada pelas casas comerciais, que iluminam as suas fachadas e armam, algumas, os seus «pinheiros» no passeio que lhes fica defronte; numa indefinível euforia que se espalha no ambiente. Tudo toma um ar festivo; gastam-se as economias corajosamente amealhadas durante o ano para estrear qualquer coisa nas Festas ou gastar em presentes. Bolos-de-mel, broinhas; anonas e abacates, já fora da sua época e por isso mais apreciados; «carne de vinho e alhos» — palavras de todos os dias que têm, porém, um sentido mais forte, imediato, quando chega o Natal, mesmo até para aqueles que se limitam a pensá-las, sem possibilidades de lhes dar concretização… O Natal faz nascer uma esperança em cada coração.
Não apenas a dum Mundo em Paz—aspiração natural, constante e veemente de todos os
homens e mulheres de boa-vontade—mas a esperança humaníssima de qualquer coisa
que melhore a vida, conforme as necessidades de cada um. Quantos se contentariam
com um bom jantar, um mimo, um agasalho, um brinquedo que lhes alegrasse os filhos .
O Natal traz, a alguns, essa probabilidade. Tudo isso conta na claridade que irradia da
palavra Natal. Tudo isso conta na alegria difusa das Festas da Madeira.
A «rochinha» ou «lapinha» madeirense, inspirada na própria paisagem, é, a um tempo,
ingénua e original: o mesmo presépio das províncias portuguesas, mas diferente de
todos eles, com dois Meninos Jesus—o que está na gruta, deitadinho sobre palhas, e
outro, mais crescido, vestido de seda, imagem tutelar de todos os lares da ilha, que é
colocado, como soberano, no alto da fantasiosa construção. Casinhas, pastores, ovelhas, e as mais variadas figuras criadas pelos barristas populares, todos os presépios têm. Mas a Madeira junta a tudo isso os melhores frutos da época, a verdura dos seus campos e a delicadeza das suas « searas». Vão-se perdendo certas praxes e tradições de cunho medieval que caractizavam, nas diversas freguesias, o Natal da ilha: mascaradas, cantares e folguedos exclusivos da ocasião. Prevalece, contudo, imutável, o ambiente de festa que abre um parêntesis na monotonia quotidiana e dá aos ilhéus de todas as classes, tenham ou não tenham Fé, um espairecimento diferente, às vezes uma ilusão de optimismo e mudança. . .
Referância Bibliográfica: LAMAS,Maria. Arquipélago da Madeira maravilha atlântica,
Funchal,1956, 383-384.