Podem crer que não será só o facto de conter um texto sobre a tradução para o Inglês de O Mundo Não É Deste Reino/My World Is Not of This Kingdom, de João de Melo, nem sequer o de mencionar proeminentemente o nome da minha mulher nessas mesmas páginas (que o autor então conhecia como April Monteiro, quando foi sua aluna na City University of New York, e depois como Adelaide Batista, já Professora de Estudos Norte-Americanos na Universidade dos Açores), a única razão que me leva a escrever sobre estas memórias de Gregory Rabassa, desde há muito esperadas por alguns leitores da literatura mundial. Mas posso – e acho que devo mesmo – afirmar uma vez mais (sobre isso já escrevi num ensaio intitulado “Sobre Adelaide Freitas e o seu Sorriso por Dentro da Noite”, ante o ranger de dentes e desgosto dos mesquinhos e raivosos de sempre entre nós) que sem a Adelaide, provavelmente nem João de Melo, muito menos ainda qualquer outro escritor açoriano dos nossos dias, teria sido objecto de leitura e depois traduzido pelo “cobiçado” mestre. Daí o destaque, para o meu indisfarçável contentamento, que ela recebe no livro de Rabassa, pois o silêncio dos ingratos de pouco vale a longo prazo. Muito azedume aqui? Talvez, mas tentem viver e trabalhar na perpétua Bruma Cultural das Ilhas Encantadas.
Folheei o livro, – escreve Gregory Rabassa, depois de dizer que a Adelaide lhe tinha enviado O Meu Mundo Não É Deste Reino – vi o mesmo sorriso do ovo dinossáurico que tinha visto em Cem Anos de Solidão, e de imediato me dei conta de que estava ante algo de importante. Comecei logo a ler o romance e descobri que me aproximava de Macondo. Mas deixem-me dizer aqui e agora que Rozário não é mais Macondo do que Macondo é Lagado ou Laputa. São todos o mesmo lugar simultaneamente. Tem-se falado muito acerca do Todo-o-Mundo, mas pouco acerca do Toda-a-Cidade. As suas ambiências têm sido comuns quando representadas, desde Winesburg, Ohio, ao Yoknapatawpha County. Por isso, aborrecem-me sempre os críticos míopes que, tal como eu, vêem o tal ovo dinossaúrico, mas depois continuam a vociferar de como Melo nada mais é do que um imitador de Garcia Márquez. São estes os frutos da intertextualidade, seja lá isso o que for? Eu tenho traduzido ambos os autores e fui treinado para topar inteligência falsa, podendo garantir que não há imitação nenhuma aqui, somente essa coincidência universal que caracteriza a condição humana. Na realidade, como a cultura dos Açores é um pouco mais antiga do que a da Colômbia, a Achadinha e o Rozário antecedem Macondo. Que fique pois tudo por aqui e deixemos em descanso as nulidades de sempre.
Tal como no caso de João de Melo, Gregory Rabassa dirige-se ocasionalmente em If This Be Treason a outros críticos seus, e aos críticos da tradução em geral, muito especialmente aos que ele classifica metaforicamente como o Professor Horrendo, esses que a partir da academia não sabem fazer, mas supostamente sabem teorizar. Rabassa confessa logo no início que o seu método é – não ter método. Para além dos seus essenciais conhecimentos linguísticos e culturais envolvidos na tradução de qualquer obra, rege-se sempre pela “intuição e serendipity”, ou seja, mantém-se aberto a “descobertas inesperadas”. Rabassa admite os riscos tangenciais e alguns limites óbvios de qualquer “tradução”, mas afirma vezes sem fim que uma “tradução” é meramente outra “leitura” interpretativa de um texto, cada leitor assimilando de modo diferente essa mesma narrativa em questão. Sendo assim, não acredita ser possível “ensinar” ninguém nesta arte, para além de uma consciencialização do acto literário em geral.
A minha admiração pelo tradutor norte-americano de literaturas hispânicas e de língua portuguesa vem de longa data, desde os anos em que fui aluno de uma licenciatura em Estudos Latino-Americanos, na California State University, em Fullerton, no princípio dos anos 70, depois um seminário marcante de pós-graduação no qual estava incluído um estudo do incomparável romance de Gabriel Garcia Márquez, One Hundred Years of Solitude (1970), na tradução precisamente de Rabassa, esse feito de língua e linguagem que levaria a novas e significativas visões em todo o mundo anglófono: uma maior apreciação dessas literaturas, abrindo o caminho a outros autores do grande continente a sul assim como a alguns da Península Ibérica. Gregory Rabassa tornar-se-ia tão ou mais famoso do que muitos dos próprios escritores que ele ia reinventando – e “reinventando” é aqui a palavra certa – na língua de Shakespeare. Garcia Márquez passaria logo depois a dizer que preferia o seu romance, Cien años de soledad (1967), nessa versão de Rabassa, e noutra altura afirmaria que ele era “O melhor escritor latino-americano em língua inglesa”. Aliás, antes de One Hundred Years of Solitude, Rabassa já tinha “feito” o seu nome com a sua primeira grande tradução, que lhe traria igual fama e até o prémio National Book Award, pelo “difícil” Hopscotch (1966), Rayuela no original, de Júlio Cortázar.
Rabassa viria mais tarde a “ler” e a “reinterpretar” uma parte substancial da vasta obra do mesmo autor, e de muitos outros latino-americanos, mas depressa também passou à literatura do Brasil (Clarice Lispector, Afrânio Coutinho, Dalton Trevisan, Vinícius de Moraes, Jorge Amado, Oswaldo França, Júnior, Machado de Assis, Darcy Ribeiro e José Sarney), e à do nosso país (António Lobo Antunes, Mário de Carvalho, e o já referido João de Melo). Rabassa confessa nas suas memórias que sempre preferiu traduzir prosa ficcional, mas não resistiu a verter para Inglês alguns poemas de Vinícius de Morares, sob o título The Girl From Ipanêma. Curiosamente, Gregory Rabassa, nascido em Yonkers, New York, em 1922, de pai cubano e de mãe de ancestralidade escocesa, escreve a dado momento em If This Be Treason: “Correndo o risco de ofender ou espantar muitos dos meus amigos de língua espanhola, tenho de admitir aqui e agora que prefiro o Português, especialmente o da oralidade brasileira, com todos os seus sons e rítmica muita própria”. Rabassa, aliás, viveu no Rio de Janeiro durante dois anos logo no começo dos anos 60, e visitaria sempre o país com alguma frequência, inclusive as cidades de Belém, Recife e Bahia, conhecendo profundamente certas realidades socioculturais durante e após os seus estudos de pós-graduação na Columbia University, tendo defendido uma tese de doutoramento sobre literatura brasileira na qual Jorge Amado, o autor de Mar Morto, foi, nas palavras de Gregory Rabassa, “uma das figuras principais”.
If This Be Treason/Translation And Its Dyscontents: A Memoir está dividido em três partes. A primeira, “The Onset of Perfidy”, narra as memórias de Gregory Rabassa, e das suas “circunstâncias”, as pessoais e as profissionais, tudo o que o levaria à sua arte. Logo depois de sair das forças armadas após a Segunda Grande Guerra – em que Rabassa, devido ao seu conhecimento de várias línguas, serviu na OSS, antecessora da CIA – recomeçou ou seus estudos e fundaria com outros a revista Odyssey, que durou seis números, mas que já se distinguia como uma publicação em busca de autores desconhecidos da América Latina, e diz Rabassa no capítulo “In The Beginning”, “foi a verdadeira precursora do que nos Estados Unidos se viria a chamar o ‘Boom’ latino-americano”; a segunda, “The Bill of Particulars”, relata como cada livro lhe chegou às mãos para ser traduzido e as decisões e “escolhas” linguísticas e culturais que cada narrativa exigiu do tradutor; na terceira parte, “By Way of a Verdict”, Rabassa conclui com brevidade toda uma vida ao serviço da literatura, repetindo
a sua permanente “insatisfação” com esse trabalho nunca “acabado” – a “tradução” destas e de quaisquer outras obras.
Pelo menos uma outra aluna sua – com quem Adelaide também se sentou nas aulas de Gregory Rabassa nos idos de 70 e desenvolveria mais uma amizade que dura até hoje – viria a ter o seu nome noutra grande obra literária da literatura portuguesa do século XX: Elizabeth Lowe, que traduziu, entre obras de outros, o romance de guerra Os Cus de Judas, de António Lobo Antunes, com o título South of Nowhere. Escreve Rabassa num dado momento: “uma boa fonte de descoberta de obras para traduzir foram os livros que os meus antigos alunos me enviavam”.
A literatura portuguesa e a sua componente açoriana agradecem. Finalmente.
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Gregory Rabassa, If This Be Treason/Translation And Its Dyscontents: A Memoir, New York, 2005.
Todas as traduções dos passos aqui citados são minhas. Peço desculpa ao Mestre, mas tinha de ser. My World Is Not of This Kingdom foi publicado pela Aliform Publishing, Minneapolis, 2003. Foi aceite para publicação por Jay Miskowiec, outro antigo aluno de Gregory Rabassa.
Sobre o autor Vamberto Freitas:
Leitor de Língua Inglesa na Universidade dos Açores, escritor com uma expressiva produção literária sobre as literaturas norte-americana e açoriana, neste momento preparando uma coletânea de ensaios sobre literatura luso-americana,com saída prevista para outubro de 2010. Tem vários livros, entre os quais Jornal de Emigração (4 volumes) O Imaginário dos Escritores Açorianos e A Ilha em Frente: Textos do Cerco e da Fuga. Tem publicado algumas traduções, principalmente da poesia de Frank X. Gaspar e dalguma prosa de Katherine Vaz intitulada O Outro Lado do Espelho: Imaginários Luso-Descendentes em que sobressaem o rigor técnico e estético com grande sensibilidade poética. Colabora em vários periódicos com textos de crítica literária e cultura.
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Créditos imagens: Foto Rabassa: www.ernestocortes.blogspot.com;
foto de Vamberto Freitas, arquivo pessoal.