O mais recente de cinco álbuns, O Rosto da Festa / Images of A Feast Day, edição da Autora, é um percurso encantado pelos Açores, entre 2000 e 2006.
O acento está na festa de cada dia, que ela vive jubilosamente, seja ao lado de picarotos vindimando fraguedos e de outros ilhéus, seja no restrito da família e amigos. O particular desses trabalhos é, agora, a Festa do Divino Espírito Santo, enraizada tradição a que só assisti em Santo Antônio de Lisboa, perto de Florianópolis, no estado de Santa Catarina, Brasil. Devo esta experiência a Lélia Nunes e seu Sebastião, que tão bem nos bolearam, a mim e Teresa, por recantos e amizades. Mas, em três semanas de Horta (1993), embora fora de época, comecei a entender a força dos impérios e o aprumo das almas no cuidar de trajes e da festa.
Excertos de Era Uma Vez o Tempo, cinco volumes diarísticos do também ficcionista Fernando Aires (Ponta Delgada, 1928), orientam e iluminam, em português-inglês (tradução de Miguel Moniz), o rigor da, bem certo é, única cor possível. Já não temos só focalização e reportagem: há instantâneos que picturalizam rostos e sorrisos, e nos lembram Renoir, em que o tratamento do céu desafia qualquer impressionista, enquanto a caliça de templo já denuncia cansada espátula. Os nocturnos são inesperados, em seus pontilismos ou diluições, além de convocarem puros reflexos de Monet na série sobre a catedral de Rouen. Nesta narrativa fragmentada – sobre que se poderia discorrer ficcionalmente –, há, também, histórias surpreendentes, como na sequência do dourado cachorro e sua humanização dentro e fora do Café Sport.
No extremo da profunda religiosidade, subsiste o excesso, ora sacrifício inumano de penitência ajoelhada pela quadrícula da estrada, ora bailado ou tourada que aliviam, afora certos grotesco (e não só da bebedeira), tudo mediado pela seriedade na composição dos semblantes e dos altares, que, percebe-se, exigiu longa preparação. Fernando Aires resume: «Afinal, penso eu, é no português das Ilhas que se guardam quase intactas as jóias da família – por via do saudosismo e da melancolia que estão no mar e na distância. Aqui, Deus, apesar de tudo, serve ainda de substituto às Índias impossíveis. Torna-se mais refúgio e religião. Sintetiza o Ethos deste povo – o seu carácter, o seu estilo de conviver e de criar. A sua visão do mundo.» (p. 94) O «caso açoriano» (p. 118) responderia, assim, ao sebastianismo do Continente, igualmente migratório, mas sem os medos vulcânicos.
Da linhagem de D. Carolina Michaëlis, infinitamente cuidadosa e sábia na aproximação ao texto literário português, Lucia de Vasconcelos (Lisboa, 1936) filigranou com igual carinho a vida de um povo, que pudera ser o transmontano, se oportunidades houvesse – e bom era que houvesse.
Contingentes que somos, resta-nos a imortalidade dos que, connosco, fixámos.
Para mim, que não a conheço, a artista é um rosto e máquina em riste sobre oceano feliz. E, pelo que me diz Teresa, a força de acreditar até perfazermos uma obra.
Doença incurável concedera-lhe três meses. Precisou de cinco para este livro.
Então, deu entrada no hospital.
Fará este Natal um milagre?
[Lucia Vasconcelos morreu em 20 de Dezembro de 2006.ƒÍ
Notas:Crônica publicada em A Voz do Nordeste (Bragança), 19-XII-2006. [= Açoriano Oriental – Suplemento de Cultura (Ponta Delgada), 27-III-2007.] ;
Fotos: Maria Lúcia Vasconcelos e Vera Vasconcelos
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