A Respiração do Vulcão (na Ilha do Pico)
Nesta visita a quatro ilhas em doze dias, o arquipélago recebe-me com o seu batalhão de vulcões, extintos, dormentes, mais ou menos ativos, cuja respiração aérea ou subaquática pode ser evidente ou mal se perceber, mas nunca deixa de se fazer sentir. Por esse motivo, o título acima seria até mais conseguido se falasse de vulcões, no plural, consideradas as inúmeras caldeiras, crateras e furnas dispersas em ilhas diversas que distam entre si centenas de quilómetros. Mas na consciência de que esta visita-relâmpago aos Açores me deixa não só as violentas impressões duma riqueza humana e duma sublimidade natural cuja amostra se forçou a caber em poucos dias, como também e sobretudo a impressão do tanto que terá ficado por ver, opto aqui por falar do que apenas se me insinuou mas soube ser avassalador. Rendendo-me à impossibilidade de falar de tudo o que vi em quatro ilhas diferentes, opto por me referir àquela que menos conheci e talvez por isso mais curiosidade deixou. Escrevo assim no desconforto dum projeto falhado desde logo: falar do que ficou por conhecer, estimulado por uma impressão que contudo perdura. Porém é um desejo tanto mais tentador quanto realmente sempre se beneficia, e julgo que beneficiei, da generosidade dos anfitriões e da evidência duma terra – ou rocha – epicamente trabalhada, que visivelmente partilham dessa mesma energia vulcânica de que este texto se gostaria de imbuir.
Numa estadia breve e imerecidamente entalada entre o sabor duma Dona Amélia no domingo, na Praia da Vitória, e os sons alegres do primeiro ensaio para a mega-chamarrita da Horta, na quarta-feira, o Pico chega-me depressa e abalroa-me tão intensamente quanto se permite uma ilha e montanha de dimensões colossais, de que apenas pude suspeitar, já nelas imerso, ou procurar conhecer enciclopedicamente, para entender melhor a minha proporção: 2351 metros de altitude máxima, 447 km2 de área, 3000 anos de juvenil imponência. Abalroa-me o Pico sem que sequer se dê conta de mim, obviamente, apesar do apito da lancha, alarmante e familiarmente tranquilo, que anuncia a chegada do meu grupo. Desembarcado por entre as suas ondas e biscoitos, no Cais do Pico, e mais tarde já perdido entre nevoeiros e as hortenses que definem as divisórias nem sempre respeitadas pelo gado, hei-de usufruir continuamente dessa anonimidade humana perante a natureza grandiosa. Para mais, o cume do Pico – passe a redundância – esconde-se, por capricho da sua majestade, à espera de melhores dias em que, com sucessivos cliques de câmara, aprisionarei ângulos todos eles insuficientes para o reter num ecrã e poder dar a conhecer a outros como eu. Avistada sem nuvens há vários dias, a partir de São Mateus, na Terceira, num ângulo único que sobrepôs essa mesma ilha, São Jorge e o Pico, desde o dia anterior a montanha mantém-se envolta em bruma e não consta que vá mostrar-se tão cedo, deixando todos no meu grupo a suspirar por mais.
No momento em que escrevo, regressado já das ilhas e em trânsito por Redlands, Califórnia, onde por sinal reside uma comunidade açoriana, pego n’As Ilhas Desconhecidas, de Raul Brandão, para oferecer um contexto suplementar à presença que estas ilhas mantêm no meu pensamento. Na verdade vivo uma colonização absoluta pelas ilhas visitadas nos últimos dias, colonização esta beneficiada pelo jetlag, ou que a ele favorecem. Assim, abro o livro talvez para combater a impressão de que os milhares de quilómetros entretanto percorridos não me tiraram das ilhas em que penso constantemente, mas já com temor de em breve saber-me totalmente noutro continente. Raul Brandão fala-nos dum Pico cujo “aspecto é dum grande luto, duma grande desolação” (94), uma ilha preta, queimada, em que cada dia promete converter-se numa batalha pela sobrevivência. Na sua leitura dupla, no entanto, logo nos confessa que a ilha se apoderou dos seus sentidos: “o Pico é a mais bela, a mais extraordinária ilha dos Açores” (110). É para mim a mais bela? Consideradas as quatro que visitei, é certamente impossível dizê-lo, sobretudo se pensar nas oníricas lagoas e nos feéricos miradouros de São Miguel, ou na generosidade das baías de Porto Pim ou da Praia da Vitória, para já nem falar da história patente em todos os espaços urbanos calcorreados. Mas é inegável o “estranho poder de atracção” do Pico (110). Relidas agora, as palavras de Brandão são reiteradas pela visualidade das minhas próprias lembranças, mas em muito desmentidas pela memória de cada momento da visita, já que toda a evidente aridez e o magnetismo sentido – que eu imagino seja o vulcão a respirar –, foram já convertidos pelo trabalho forçado dos picarotos numa forma de generosidade da ilha, que acolhe de braços abertos o visitante inevitavelmente alheado da dureza da vida local.
Em São Roque, na pousada, as hordas de turistas são convidadas à tranquilidade pelo claustro conventual do século XVII. Os olhos apreciam a magnífica construção e a visão do mar azul e de São Jorge, por entre as criptomérias e os muros baixos de basalto.
Já no Museu do Vinho do Pico, na Madalena, inspirados pela prova de licores junto das falésias agrestes do Cachorro, conhecemos a cronologia do vinho local, desde a sua introdução em cerca de 1470 até aos nossos dias, passando pela sua importância na Rússia dos czares, pela destruição pelo oídio e a filoxera, e o reconhecimento da Paisagem da Cultura da Vinha como património UNESCO, entre outras formas recentes de proteção de toda esta zona natural. A visão das vinhas, no entanto, não deixa margem para crer em facilidades para o picaroto. Nas suas caixas constituídas por muros de basalto, autênticos labirintos aos olhos do não iniciado, tenuemente protegidas de erosões e de névoas, as vinhas respondem ao apelo do homem e brotam diretamente da pedra, sem estaca nem apoio. Ira, só a da rocha de há três mil anos, que constantemente o homem aplaca neste cenário insolitamente agrícola. É uma paisagem de pedra vinhateira que se perde de vista, até ao mar; uma confusão visual fácil já que se trata sempre da mesma rocha, o “torresmo” de que Brandão falava.
O Museu não disfarça as velhas tensões com os senhores do outro lado do canal – quem aufere do lucro das uvas? – a todos, no entanto, rendendo homenagem. E, por outro lado, ainda que ilustre bem o domínio do terreno e da técnica pelo homem, ao longo de quase cinco séculos, a natureza que acolhe o Museu inevitavelmente convoca o sentimento de se estar perante um cenário mais próprio do começo do mundo. Encontramo-nos aqui entre a omnipresente pedra negra em que as uvas se equilibram e gigantes dragoeiros capazes de nos ligarem ao princípio dos tempos, não sabemos se pelas suas raízes elegantemente escondidas, se pelos ramos contorcidos em labaredas verdes. Respirando fundo, volto a cabeça à procura do Pico e encontro apenas uma nuvem, mais clara um pouco que a pedra que vai queimando a humidade, encosta abaixo.
Desta mesma “dupla tenacidade: / a da natureza e a dos homens” (36) nos fala a poesia de Manuel Tomás, autor que tenho a oportunidade de conhecer logo em seguida. Observo aliás as diferentes facetas dum envolvimento com a comunidade e a ilha, e o desejo de preservação da memória coletiva, seja a do maroiço ou a das lanchas que atravessavam o canal, ligando a agricultura do Pico ao Faial. A razão de ser deste desejo de preservação da memória é simples e encontro-a mesmo em praticamente todos os diálogos mantidos com os açorianos de quaisquer das ilhas visitadas: em tempos europeus em que se encontram mais facilmente ameixas no supermercado vindas do Pacífico, do que nas hortas atrás destas casas no meio do Atlântico, a memória a que Manuel Tomás apela é também a da consciência coletiva do esforço de sobrevivência dos picarotos. Tal como o era a memória das décadas da caça à baleia, entretanto imortalizada num o
utro museu. Acerca do maroiço, largas pilhas de pequenas pedras retiradas do solo para criar um terreno mais propício à agricultura, num equilíbrio precário que todavia resiste, lembra Tomás que também neles “erguem-se pinheiros” (30), do mesmo modo que toda a ilha se converte numa “pastagem tenra e verde / [que] brota da rocha” (24). Assim, a aridez da terra é de todos os tempos; mas aquela aridez contra a qual se empilham agora as palavras nesta linguagem poética é a do esquecimento dum passado tão próximo.
Em Maroiço, a Ilha do Pico é evidentemente central, quase o protagonista único dum discurso lírico para onde convergem as narrativas pessoal e picarota. No Faial, diz-nos, há sempre uma “bússola a indicar o Pico” (29), e o desejo de voltar à ilha negra está sempre presente, mesmo que esse regresso seja o próprio exílio e não o seu contrário (27). Já na ilha a vida rege-se num tempo circular que apesar de tudo se pode perder (“enganamos o dia seguinte / lendo / o jornal do dia antes”, 32), mas quase sempre ganhar, ao som de cagarras e de grilos, na presença de salgueiros e figueiras. Neste elogio do Pico, no entanto, cabem todos, provando aliás que qualquer mundividência que parta da rocha da ilha não deixa por isso de poder ser universal: “os de cá não são os naturais, / mas os que vivem estes salpicos verdes” (37). Retenho por isso alguma esperança. E a partir da sombra duma figueira olho para cima, deparando apenas com o círculo de nuvens em que o Pico se protege.
A agenda repleta leva-me ao encontro do trabalho de três gerações de picarotos, na ilha: para além de Manuel Tomás, Ermelindo Ávila, o decano intelectual das Lajes do Pico cuja frescura se mede no sorriso e na agudez do seu olhar, e o jovem luso-canadiano Terry Costa, cuja energia contagiou todo o arquipélago no festival artístico “Azores Fringe Festival”. Ermelindo Ávila fascinará todos os presentes com a história dos Açores e do Pico, entre a sua periferia e uma absoluta centralidade, falando-nos duma vida constantemente negociada com o mar, por entre cabos marítimos intercontinentais, “U-boats” alemães, a aventura dos baleeiros e a diáspora açoriana. Com Terry Costa, ouviremos de outros Picos nem sempre falados e conheceremos a dinâmica cultural que promete tornar a ilha numa capital artística do meio do Atlântico e converteu já a Mirateca e a Madalena em espaços que querem viver a arte de portas abertas, apostando no trabalho intelectual comunitário. Entre os dois diálogos uma espreitadela ao Pico insinua-me que a montanha se quer mostrar, para poucos minutos depois se esconder de novo em exaladas nuvens.
Depressa a estadia no Pico chegará ao fim, ficando por fazer a muito desejada observação de baleias. Presto o meu tributo a esta vida próxima dos cetáceos numa visita ao Museu dos Baleeiros e nas palavras lidas de Dias de Melo. O novo mar de outras baleias igualmente desejadas chegará pela proa da próxima viagem, que se quer para breve. Mais rapidamente chega a hora de embarcar para o Faial, a partir de onde sempre o olhar procurará o Pico, num jogo de escondidas de quem se habitua a perder com gosto. Em breve embarcarei para São Miguel, de onde mais tarde seguirei para Boston, numa rota outra pelos mesmos lugares calcorreados desde há séculos.
O alerta chega pouco depois de partirmos do Faial: Daqui fala o vosso comandante. O voo para Ponta Delgada demorará aproximadamente quarenta minutos. Aproveitamos para informar que dentro de momentos passaremos pela montanha do Pico, ao nosso lado direito. E finalmente o descubro, pedregoso, simples e soberano, ou um “seio destes / tão perfeito / e vasto”, na fórmula sensualmente apropriada de Urbano Bettencourt. Pico sobre pico sobre pico, passa suspenso pelo nosso olhar, ou passamos todos nós, fugazes, aproximando-nos magneticamente, enquanto o vulcão finge o seu milenar sono orgânico. Aguardo, desde então, que o meu fôlego recupere.
13 de Agosto de 2013
Notas: 1.Obras Citadas:
Bettencourt, Urbano. Outros Nomes, Outras Guerras – Antologia. Lajes do Pico: Companhia das Ilhas, 2013.
Brandão, Raul. As Ilhas Desconhecidas. Lisboa: Quetzal, 2011.
Tomás, Manuel. Maroiço. Lajes do Pico: Companhia das Ilhas, 2013.
Sobre o Autor: Ricardo Vasconcelos é estudante da
Universidade do Wisconsin, Milwaukee. No último mês de Julho, com um grupo de colegas,alunos do Professor Dr.Onésimo Teotónio Almeida, visitou os Açores.