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Aparece ainda mais um pormenor, de grande importância, embutido na alma da viola, e de grande significado, compreendido melhor do que ninguém pelas pessoas de todo o Arquipélago. Quando rodamos a Viola da Terra aparece-nos a representação da Coroa do Espírito Santo.
Esta presença tão forte, na estética da Viola, é algo que o povo assim viu e interpretou. E que é mais um motivo para olharmos a nossa Viola de forma diferente.
E ainda nem falamos da sua sonoridade…
Nos Açores a Viola ganha características próprias em cada Ilha, da execução à afinação, até às diferentes modas e papel em cada localidade e grupo onde se insere. No entanto, a função Social e Cultural é a mesma – JUNTAR O POVO.
Interessa conhecer este fascinante mundo da Viola, apelidada agora, séculos depois, de Viola da Terra.
Será que hoje contínua a ter o papel preponderante do passado, será que tem futuro assegurado?
É bem verdade que a Viola deixou de estar em cima da colcha da cama da maior parte das famílias Açorianas, que perde a sua projecção de solista ao ser integrada em grupos de cantares e folclóricos onde sofre um abafamento. No entanto, é também verdade que a Viola vai subsistindo graças a estes grupos e escolas de formação por estes dinamizados ao longo de várias décadas.
A Viola da Terra foi perdendo adeptos nas últimas décadas devido ao aparecimento de outros instrumentos de maior mediatismo que chamou à atenção dos mais novos, devido à emigração que levou muitos dos nossos executantes, e devido a uma factor que sempre existiu ao longo da história da Viola: falta de Mestres com interesse em ensinar.
Hoje a Viola está viva, mas devido a muitos anos de esforço e dedicação de várias pessoas. Aqui retrato um pouco da realidade Micaelense, por ser a que melhor conheço e, também, a que mais documentada se encontra.
Na década de 50 do século passado com a formação do grupo Tavares Canário a Viola tenta ganhar novo fôlego. Aparecem tocadores como Constantino Amaro bem acompanhado por Libório Raposo e que trazem a Viola da Terra como solista para a rádio, para os palcos. E assim continua por alguns anos.
Devido à existência de musicólogos e investigadores, e boa vontade de grandes tocadores, a Viola começa a ser tratada com outro amor e dedicação.
O Padre José Luís Fraga tem esse mérito de impulsionar o grupo Tavares Canário mas também de registar em livro vários temas do folclore Açoriano.
Por aquela altura o Professor Artur Santos faz uma recolha sonora em São Miguel e Santa Maria onde a Viola da Terra está muito bem registada com velhos Mestres tocadores. Registos que são, nos nossos dias, preciosas sonoridades de um mundo que muitas vezes nos imaginamos a viver, sentados num banco ao lado da família, num bonito serão. A fogueira acesa, o burburinho constante, e os tocadores… os tocadores a tanger a Viola primorosamente, como eles bem sabiam, como o Professor Artur Santos bem registou… como desejava por lá estar…
Pessoas como o Tenente Francisco José Dias, vindo da música das filarmónicas, apaixona-se pelo instrumento, e dedica-lhe uma importante obra com registos em partituras, observações sobre os balhos e considerações sobre as tonalidades e base de composição das peças. Uma obra que traz o passado para o presente e o perpetua para o futuro.
Outra pessoa incontornável na valorização e dinamização da Viola da Terra é a Dra. Maria Antónia Fraga. Cd’s editados, artigos de opinião, muitos concertos dados e uma vida dedicada a esta causa. Preservando a Viola, o Folclore e a nossa Cultura.
Precisávamos de mais pessoas a gostar assim da Viola, a falar com paixão e conhecimento. Mas um conhecimento real, um conhecimento de vivência e de entrega, assim percebe-se quem conhece e vibra com a Viola. A Viola quando nos toca é para toda a vida.
Mas a Viola não teria chegado aos nossos dias sem o ensino, sem passagem de conhecimentos, sem Mestres da Viola.
Aqui começa a história que melhor conheço da Viola e que tem como protagonistas grandes Mestres, grandes pessoas, gente que alterou o modo como a Viola era vista. Não conheci todos, não conheço todas as histórias, por isso falo dos que fazem parte da minha história pessoal e que mantiveram escolas de Viola por largos anos.
Carlos Quental é o Mestre com quem aprendi a tocar a Viola, na Ribeira Quente, no inicio da década de 90. Ensinou um pouco por toda a Ilha de São Miguel marcando dezenas de jovens tocadores que se deixaram contagiar pelo seu entusiasmo e amor com que falava da Viola. Dizia-me ele há alguns anos: “Não deixo cassetes nem discos gravados, mas deixo alunos e gente que toca, e isso é a melhor recompensa”. Muitos grupos Folclóricos ainda têm tocadores actualmente devido aos seus ensinamentos.
José de Oliveira, hoje com 83 anos, manteve na Relva uma Escola de Violas durante várias décadas. São várias as pessoas que passaram por aquela Escola e que integraram grupos Folclóricos. Para além disso a Escola manteve sempre a vertente de Concerto passando por muitos palcos e dinamizando a Viola da Terra.
Miguel de Braga Pimentel será, na actualidade, o Mestre de Viola da Terra que mais contribuiu para o registo da Viola da Terra. Com três trabalhos editados e muitas outras participações, deixa-nos um rico espólio da música instrumental da Viola da Terra, fruto dos ensinamentos que recebeu o seu Pai e Tio, e fruto da sua atenção aos pormenores, dedicação diária, memória de excelência e de uma vida a tanger a Viola.
No ensino deixa dezenas de seguidores resultado de 2 décadas a ministrar cursos em regime de Curso Livre no Conservatório Regional de Ponta Delgada, e dos cursos que leccionou um pouco por toda a Ilha, impulsionados por Grupos Folclóricos, Associações, Casas do Povo e Juntas de Freguesia.
Pelo Conservatório passaram ainda, por períodos mais curtos, Alfredo Gago da Câmara e Mário Jorge Ventura.
A Viola da Terra no Conservatório é uma presença incontestável e por muitos desejada desde o início da actividade deste, uma vez que valorizava este instrumento só nosso, proporcionava o seu ensino, e tinha uma resposta imediata e necessária na sociedade com integração dos alunos em grupos Folclóricos ou outros. No entanto, só em 1982, segundo os registos existentes, começa a ser leccionada
Em 2005, finalmente, naquela instituição, a Viola entra em regime de curso curricular. Em São Miguel com o professor Ricardo Melo e na Terceira com o professor Lázaro Silva. Um passo que veio proporcionar uma complementaridade (na minha opinião) ao ensino da tradição oral, numa instituição que pode, finamente, aferir conhecimentos e certificar habilitações.
Nos nossos dias a Viola continua a sua luta, um pouco por todas as Ilhas. O interesse na Viola é cada vez maior, fruto de um trabalho desenvolvido nos últimos anos, quer pelo Conservatório, quer por Escolas fora dele e também por tocadores individualmente ou em grupos, que se têm dedicado cada vez mais ao instrumento. Para além disso temos também um acesso cada vez maior a meios de divulgação que não existiam outrora. O interesse dos órgãos de comunicação é também cada vez maior, mas isto, segundo a minha opinião, deve-se também ao facto de que, o que é feito na actualidade é feito com qualidade, seriedade e, acima de tudo, com alguma inovação.
Para além de aprender com os velhos Mestres, procurar registos antigos, transcrever para partituras ou, simplesmente, ensinar de modo tradicional (ponto a ponto), a minha preocupação actual é de conhecer e levar os outros a conhecer mais intimamente a nossa Viola, nas 9 Ilhas dos Açores, bem como as diferentes Violas Portuguesas. Alargando também o leque à Viola Brasileira, que vem a ser um resultado das nossas Violas de Portugal pela emigração.
A 2 e 3 de Setembro de 2011 decorreu em São Miguel o I Encontro de Violas Açorianas, com tocadores de 5 Ilhas: Flores, Graciosa, Pico, Terceira e São Miguel. Sendo eles respectivamente: José Serpa, António Reis, Orlando Martins, Lázaro Silva e Rafael Carvalho. A organização foi da recém-criada Associação de Juventude Viola da Terra com o patrocínio do Governo dos Açores.
Pode encontrar neste link toda a reportagem e vídeos do Concerto e Conferência:
http://www.freewebs.com/violadaterra/encontrosdeviolas.htm
Este evento tinha um objectivo muito claro subjacente a todos os outros: dar a conhecer a sua Viola aos Açorianos. A Viola passa despercebida, como já referi acima, na maior parte dos grupos onde se apresenta, e temos de trazê-la para palcos a solo, mostrando as suas potencialidades, diversidade e riqueza. Este projecto pretende, um dia, juntar as Violas das 9 Ilhas em Palco.
Mas como atrás referi, o importante é, para além de mostrar as várias facetas da Viola da Terra, conhecer a sua família e o diferente trabalho que está sendo feito em cada região para preservar a sua Viola. Em 2010 tivemos o Encontro de Violas de Arame Portuguesas em São Miguel, com participação especial da Viola Caipira (Brasil), organização do Conservatório Regional de Ponta Delgada.
Estes Encontros dão-nos motivação, ideias frescas, força para trabalhar em prol das nossas Violas. Tivemos a Viola Campaniça com Pedro Mestre, a Viola Braguesa com José Barros, a Viola de Arame da Madeira com Vitor Sardinha, a Viola da Terra com Rafael Carvalho e, por fim, a Viola Caipira com Chico Lobo. A estes juntou-se, a abrir o Concerto, a Escola de Violas da Ribeira Quente.
O mesmo Encontro teve a primeira Edição em 2009 em Castro Verde e, os seus impulsionadores estudam a forma de poder juntar, no futuro, as nossas Volas Toeira, Amarantina e Beiroa.
Para finalizar este já extenso artigo, referia o factor mais importante, no meu entender, para a preservação e continuidade da Viola: o ensino e envolvimento dos mais novos.
Esta luta é diária, é actual, mas terá de ser assim ao longo de muitas décadas. O que tem sido feito em séculos de execução da Viola não pode ser considerado suficiente, temos de continuar insatisfeitos, irreverentes, e inquietos com esta causa. Principalmente, temos de marcar a nossa geração com a Viola como outros fizeram no passado. Eles da maneira que podiam e sabiam e nós da mesma forma.
Hoje ensina-se a Viola, procura-se conhecer o instrumento, e nós temos trabalhado para esse fim, no entanto a Viola já não tem o papel que tinha na sociedade. Tirando alguns casos em freguesias mais pequenas, a Viola já não aparece tanto a impulsionar o convívio, não aparece espontaneamente. Toca-se acima de tudo nos grupos Folclóricos, mas de modo mecanizado e quase sempre da mesma forma.
Por isso temos de contagiar os mais novos, dinamizar novos espaços para a Viola aparecer, promover outros contextos e oportunidades para se tocar Viola. Assim surgiu, em 2011, a I Orquestra de Violas da Terra.
Com 23 elementos, dos 6 aos 64 anos, que aceitaram este desafio em Fevereiro de 2011, foi um espaço de aprendizagem e ensino mútuos, de grande amizade e cooperação. Os novos a aprenderem com os mais velhos, os mais velhos a aprenderem com os mais novos.
Por isso a imagem reflecte as minhas palavras anteriores: A Viola quando nos toca é para a vida toda.
Espero ter-vos tocado um pouco com a minha visão da Viola pois ensinar Viola e tocar Viola da Terra não é aquilo que eu faço, é aquilo que eu sou.
Nota: Pode ver mais informações no meu site em http://www.violadaterra.webs.com/
Rafael Costa Carvalho
Ribeira Quente
9 de Novembro de 2011
Rafael Costa Carvalho nasceu na Ribeira Quente, S. Miguel, a 22 de Setembro de 1980. Em 1994 aprendeu a tocar Viola da Terra com Carlos Quental e no ano seguinte já começou a dar formação na Escola de Viola da Terra da Ribeira Quente. Foi membro fundador do Grupo de Violas/Foliões da Ribeira Quente em 1996 e do grupo Musica Nostra em 2005. Foi membro do Grupo Folclórico São Paulo de 1993 a 2005 e tem colaborado com os Grupos Folclóricos das Camélias (Furnas), São Pedro (Lomba do Cavaleiro), Água Retorta, Fajã de Baixo e o da Associação Académica da Universidade dos Açores. Em 1996 estreou-se a acompanhar as Cantigas ao Desafio, com o seu colega Jaime Braga ao Violão, conseguindo, ainda que com alguma dificuldade no princípio, afirmar a Viola da Terra neste género musical, que havia sido substituida pela Guitarra Portuguesa. Nesta última década teve o prazer de acompanhar ao Desafio, Desgarrada e Velhas, cantadores como Jorge Rita, João Luis Mariano, Lupércio Albergaria, António Silva, António de Sousa, José Eliseu, João Angelo, Mota, João Leonel, José Fernandes, Vasco, Manuel Antão entre outros. Actualmente é responsável pela Escola de Viola da Terra e Violão da Ribeira Quente que já formou, nos últimos 14 anos, dezenas de músicos que têm assegurado a continuidade dos grupos e tradições que existiam na Freguesia e estavam em vias de se extinguir. Formou em 2005 com Ricardo Melo e Ana Medeiros o trio Musica Nostra com o qual lança o primeiro trabalho discográfico em 2010 “Cantos da Terra”. O mesmo grupo actua em 2008 no X Aniversário da Orquestra Regional Lira Açoriana, num Concerto inédito para Orquestra e Viola da Terra. Este grupo também já actuou em 8 das 9 Ilhas dos Açores, tendo ainda actuado em Bruxelas por duas vezes, no Teatro da Trindade e nas Fnac do Colombo e Alfragide. É formador da Escola de Viola da Terra do Grupo Folclórico da Fajã de Baixo Foi Formador de Viola da Terra na Academia de Música da Povoação de 2007 a 2010. Exerce funções docentes (professor provisório) de Viola da Terra, desde o ano lectivo 2008/2009, no Conservatório Regional de Ponta Delgada. No presente ano lectivo tem 15 alunos de Viola da Terra, o maior número de inscrições naquela disciplina na última década. No presente ano lectivo, está a desenvolver o primeiro Programa Minimo de Viola da Terra Micaelense para o Conservatório Regional de Ponta Delgada, da Iniciação ao V Grau.