ABISMO
Tirara aquele dia para ir ao Museu do Prado. Era um projeto que tinha acalentado desde que iniciara o curso de Belas Artes, há três anos. Por isso achou que uma ida a Madrid e a possibilidade de passar umas boas horas neste Museu poderiam ser extremamente enriquecedoras para ela.
Ao fim de uma manhã a ver todos aqueles Goyas, Murillos, Grecos…, sentia-se verdadeiramente extenuada. Maravilhara-se várias vezes; comovera-se outras tantas; assustara-se com o realismo alucinatório de algumas obras e por fim sentara-se a descansar um pouco, antes de prosseguir a sua “romagem”. Tinha pensado fazer um relatório daquela visita para se obrigar a si própria a olhar para as coisas com olhos mais observadores, mas rapidamente desistira da ideia. Era demasiado intenso o seu deslumbramento para o reduzir a um frio relatório. Decidiu guardar como memória aquilo que estava a ver.
Aquela manhã no museu parecia-lhe surpreendentemente calma. Sempre achara que o grande Prado estaria permanentemente repleto de turistas, à cata de fotografias, na avidez de perpetuar imagens já de si intemporais e desperdiçando a oportunidade de fixarem na retina aquilo que as lentes das máquinas, por muito sofisticadas que sejam, não conseguem captar. Mas não. O sossego era quase assustador. Na saleta onde se sentara um pouco, havia dois ou três curiosos, com aspeto de estrangeiros, olhando friamente para os quadros pendurados nas paredes, como se estivessem a olhar para algo familiar que já não causa entusiasmo. Olhavam inexpressivamente, sem curiosidade, sem deslumbramento, sem espanto, como se aquelas pinturas incríveis não lhes dissessem absolutamente nada. Deram uma volta rápida pela sala e saíram, passando à secção seguinte, como quem cumpre uma obrigação de calendário.
Foi aí que ela deu pelo extraordinário quadro de Bosch, Os Sete Pecados Capitais, que estava mesmo na sua frente, protegido por um vidro. Claro que já ouvira falar dele, quando abordara a pintura holandesa nas suas aulas, mas poder olhá-lo e apreciá-lo ali, ao vivo, era uma experiência única.
Olhou-o atentamente, confirmando o que já sabia. A pintura sugeria um olho, no meio de cuja pupila se via a figura de Cristo, “Aquele que tudo vê”. À volta, surge a representação de cada um dos sete pecados capitais, que ela rememorou para si, a ver se se lembrava de todos, pois há sempre um que fica esquecido – avareza, soberba, gula, ira, inveja, preguiça e luxúria. Nos quatro cantos do painel, reparou nos círculos dentro dos quais estão representados a Morte, o Juízo Final, o Inferno e a Glória. No fundo, o conjunto acaba por ser uma enorme alegoria da condição humana e do destino a que todos estamos sujeitos de acordo com as escolhas que fazemos (ou não) …
Às tantas, sem saber porquê, prendeu os olhos na Ira e pôs-se a observar todos os pormenores com atenção. Quem conhece o quadro sabe que nessa imagem estão representadas três figuras humanas – nota-se que um dos homens empunha uma adaga com a qual pretende provavelmente atacar o outro, enquanto a única figura feminina da cena tenta controlá-lo e demovê-lo. Mas isto é o que se vê numa primeira observação do painel. E é imensamente linear. Começamos logo a pensar que se trata de uma cena em que a Ira surge como consequência imediata do ciúme, típico de um triângulo amoroso. Mas isso seria demasiado óbvio para um pintor de génio.
E, aos poucos, Helena embrenha-se de tal forma nessa parte do quadro, que subitamente deixa de prestar atenção à realidade e esta transfigura-se através das pinceladas de Bosch.
Está agora, ela própria, no centro da pupila, no lugar originalmente ocupado por Cristo, mas ocupa este lugar como ser humano, claro, e, pela primeira vez na vida, sente quase fisicamente, entranhada na pele, a noção de pecado a invadi-la. Pecado deixa de ser aquela ideia meio abstrata e longínqua que aprendera desde pequena e passa a fazer parte de um todo que é ela própria, sentindo-o por dentro de si mesma ou por dentro daquelas figuras que ali estão estáticas mas que subitamente ganham vida através do seu sentir, ou da sua imaginação, talvez…
Foi estranho o que se passou então. Para quem entrava naquela saleta do museu e observava distraidamente Helena, nada de invulgar se desenrolava ali. Viam uma mulher jovem a observar um quadro, com ar extasiado, o que não é de estranhar num local como aquele em que só não se extasia quem não sente as coisas por dentro.
Mas a verdade é que Helena não estava ali. Não exatamente. Estava sim no quadro de Bosch, naquele dia da Ira. Aquelas três figuras tornaram-se familiares aos seus olhos e o que então se passou ultrapassa tudo o que é razoável ou verosímil. O único esforço consciente que teve de fazer foi o de pensar em nomes para essas personagens: ao homem das vestes vermelhas chamou Germano, ao outro Raul e à mulher Laura. O que a motivou a isso, nem ela sabe. Não eram, de todo, nomes de alguém que conhecesse. Deu-lhes esses como poderia ter dado outros quaisquer. Os nomes só importam a partir do momento em que assumem uma identidade. Por isso Helena nomeou estas personagens dando-lhes, assim, uma espécie de vida própria dentro da dimensão simbólica do quadro.
Raul amava Laura, que não amava propriamente Germano, que não se amava nem a si. E Helena, que não fazia parte dessa história senão como espetadora, logo achou que a questão estaria exatamente aí. O Ciúme. Uma velha história de ciúme, pois. Como tantas outras. O Amor pode levar ao ciúme e este conduzir à Ira. É simples. Parece não haver muito a explicar para além disso. Mas, no mundo das paixões e dos afetos, nada é simples.
Germano, mais velho do que Raul alguns anos, era uma figura calada e sombria que chegara à vila há algum tempo, ainda Raul era um adolescente, e se dedicara a um pequeno negócio de tecelagem. As pessoas não simpatizaram com ele, por causa do seu ar inquietante, quase inumano. Não falava com ninguém e instalara-se na terriola, não incomodando, mas também não dando nada de si. Cumpria as suas rotinas, tratava da sua vida e nunca daquela boca saíra uma palavra agradável. Tinha um ar selvagem e mau, de quem guarda dentro de si um tenebroso segredo que o obrigava a calar-se para não revelar o lado negro da sua alma, com pouco de humano. Os únicos momentos em que pelo olhar azul lhe passava algum laivo de doçura eram quando avistava Laura, no seu porte de quase deusa, pelos caminhos daquela vila perdida nos confins. Mas não era uma doçura genuína. Raul, apaixonado por Laura, via nesse olhar um misto lúbrico de desejo e de gula. E odiou-o por isso. Aliás, não apenas por isso, mas também porque percebeu que Laura entendia nele esse olhar e mesmo assim gostava de o sentir. E só não a odiou também, porque a amava demais.
Ela nunca se sentira dali. Sonhava com outros lugares, com outra vida, com outros sentires. Germano trouxera-lhe algo novo. Era só o que ela queria. Algo novo. Não importava o quê. Podia ser pior do que o que tinha, mas era novo. Gostava de Raul, mas mais como quem gosta de um irmão ou de um primo chegado. Não bem como uma mulher gosta de um homem. Ele sabia-o, mas acreditou sempre que ela iria um dia vê-lo como era por dentro, cheio dessa ternura por dar.
Laura também não gostava de Germano. Apenas amava a novidade que ele era. Porque vinha de outros lugares. Assustava-a aquele seu ar inquietante de quem viveu algo tenebroso, mas ao mesmo tempo excitava-a esse receio, essa inquietação. Por causa dele, foi mudando por dentro e isso refletia-se por fora, num vago e impreciso endurecimento do sorriso, do olhar doce que Raul adorava…. A mulher que ela tinha sido foi-se desvanecendo. A transformação foi-se dando aos poucos, mas só ele se apercebia de que ela vinha de dentro, porque só ele conhecia Laura na sua essência e só a ele doía esta transfiguração do ser que ela fora.
Onde as conversas,
as cumplicidades, a pátria de dentro deles em que tinham crescido? Onde a esperança de Raul? Onde a Laura de que era feito? Porque a sua vida se fizera dela e só nela se reconhecia.
Nunca tivera coragem de lhe perguntar nada, mas um dia olhou-a nos olhos e nesse olhar estranho veio tudo o que temia saber.
Foi então que começou a crescer nele uma raiva surda por Germano, pela vida, por aquela Laura que se matava dentro dele, matando-o a ele próprio.
Helena perguntava a si mesma por que razão ele, pura e simplesmente, não tentava esquecer esse amor antigo e viver o dia-a-dia, na espera de uma outra coisa que o curasse dessa. Chegou mesmo a perguntar-lho, mas o diálogo entre a realidade e a ficção nem sempre se consubstancia facilmente. Olhou Helena nos olhos, como se podem olhar duas pessoas de tempos e universos diferentes, e nesse olhar ela conseguiu entender que o Amor pode ser um abismo muito próximo do da loucura em que se perdem alguns de nós.
Não era o vulgar ciúme que o enchia desse ódio surdo, dessa raiva que o tomava todo. Era a cólera em si mesma, no seu estado puro. A cólera de alguém que sempre tivera uma existência simples, sem grandes contratempos, que se alimentara de uma única esperança, sem mais nada desejar, e agora via a morte desse sonho pelas mãos de um estranho.
E o furor cresceu dentro dele como uma árvore cujas raízes invadem tudo, sem olharem os caminhos por onde seguem. Furor contra Germano, que aparecera ali vindo do nada, contra o seu ar de desejo que condenara Laura, contra Laura que se deixara condenar e principalmente contra o facto de tudo isto ter levado a que ele já não se identificasse a si próprio como o homem que fora. Porque ele era genuinamente bom. E aterrorizava-o o facto de sempre ter acreditado nisso e de, subitamente, se achar monstruoso. Porque era assim que se via.
Por noites de inverno, deitado na sua cama simples, de homem simples, via-se tomado de um apetite insaciável de atrocidades. Atrocidades sem nome para infligir a Germano e a Laura. E um suor tremendo invadia-o, pelo horror de ver-se a si próprio a desejar coisas tão inomináveis a um homem que mal conhecia e à mulher que sempre amara. Era tremenda esta raiva negra que se entranhava nele noite após noite, que o tomava todo, cegando o melhor de si, matando por dentro tudo o que ele tinha de bom. E cada coisa boa que morria dentro dele fazia aumentar a Ira negra, selvagem, o desejo de que as piores coisas se abatessem sobre aquelas duas almas que destruíam a dele.
Adormecia com raiva, acordava com raiva, passava o dia enraivecido, numa cegueira que o aprisionava. E nos breves momentos em que este sentimento destrutivo não o tomava todo, percebia que estava a morrer por dentro do que era. E esse ódio tremendo aumentava irracionalmente, como é próprio de todas as paixões.
Às vezes parava um pouco para refletir, tentando racionalizar. Aí, por breves momentos, humanizava-se, chorando dolorosas lágrimas que lhe vinham das saudades de si. Mas bastava-lhe ver o rosto duro e impenetrável de Germano ou o sorriso meio disforme de Laura para voltar a mergulhar naquele abismo negro da sua própria alma. Que ódio sentia por aqueles que o faziam sentir tanto ódio!
Fazia uma retrospetiva da sua vida e tentava lembrar-se do que sempre fora. Parava em certos pormenores, pequenas coisas que pudessem mostrar-lhe que sempre houvera nele sinais de maldade, de uma natureza perversa que estaria agora a vir ao de cima. Porque não queria conceber a ideia de se ter transformado num ser hediondo por causa de Germano. Isso seria o pior de tudo. Preferia, então, ter nascido já mau, cheio de toda aquela perversidade que agora sentia vir à tona. Tentava justificá-la, encontrá-la no passado. Lembrava-se, por exemplo, daquele dia em que vira um gato a ser dilacerado pelo seu cão e não fizera nada para impedi-lo. Ou recordava pequenas cenas de criança, brigas, desavenças, insignificantes desejos de vingança, pequenas maldades que gostaria de ter cometido e que o fizessem achar, agora, que sempre fora de natureza maldosa. Para ele seria bem melhor concluir isso, do que continuar a achar que era de boa índole e que agora se transformara, por virtude do Amor, sim, por virtude de um Amor que sempre adorara sentir, num ser tão monstruoso. Isso era tremendo.
Aprendia, da pior forma, que a Ira não atenta apenas contra os outros. O pior dela é plantar a semente do ódio num coração que pode ser bom e que se vê assim arrasado.
Helena, intuitiva, percebeu então que aquele buraco negro em que Raul se afundava não era o lugar do ciúme. O ciúme é um sentimento menor, insignificante, ao pé desta cólera surda que corrói tudo por dentro. Nada pior do que deixarmos de ser quem somos, perdendo a nossa própria essência por algo que nos domina e ultrapassa.
Ficou apavorada, porque nunca tinha sentido tão de perto aquele bafo pestilento da Ira no seu estado puro, como algo vivo que respirava e destruía tudo em seu redor. Percebeu claramente que o ódio, tal como o amor, é perfeitamente incontrolável. Haverá talvez um breve instante, muito ténue, em que será possível retroceder e escapar, mas quando damos por isso já é demasiado tarde. No Amor, como no ódio, duas faces desta moeda que é a vida, não há escolha para deixar de amar ou de odiar, conforme o caso.
E Helena, subitamente tomada pelo terror gelado de ser invadida pelo halo desse pecado de Raul, quis fugir dali, do lugar da Ira, do quadro de Bosch, do centro da pupila, lugar onde só mesmo Cristo, pensou ela, conseguiria resistir ileso, porque percebeu que o mal pode tomar completamente as rédeas da nossa vida e puxar-nos para um abismo sem fim onde nos perdemos sem remédio, como loucos.
E foi nessa fuga, em que nem quis saber o destino daquelas três figuras, que vieram dar com ela naquela sala do museu do Prado, no seu ar de êxtase que não tinha nada a ver com a sua admiração pelo quadro de Bosch, como julgaria quem passasse por ali, mas com o pavor que sentira de se perder nos abismos negros de um dos sete pecados capitais.
Maria João Ruivo
Professora do Liceu Antero de Quental. Escritora.
Natural de Ponta Delgada,Açores