Açores, Portugal e a modernidade fugidia – ou a Europa como âncora*
Quando de Sua Ex.cia o Senhor Representante da República eu recebi o imensamente honroso convite para aqui falar neste momento, procurei indagar sobre o tema a abordar. Recebi uma simpática carta branca recordando-me que o próprio nome desta celebração abre um leque bem diverso de sugestões. Na verdade, hoje é dia de Portugal, das Comunidades Portuguesas, dia de Camões e já foi dia da Raça, quando o termo tinha conotações diversas das que nas últimas décadas adquiriu. Assim, quando me foi pedido um título a figurar nos convites para esta sessão, como ainda não tivesse o texto escrito, pensei em algo genérico. Todavia, de então para cá fui anotando algumas ideias a desenvolver. A verdade é que acumulei tantas que fiquei sem saber exactamente quais as mais apropriadas à ocasião.
Ao longo de quatro décadas tenho escrito sobre variados temas. Mas, para não incorrer no perigo de cair em abordagens demasiado académicas, optei por alinhavar um conjunto de reflexões diversas minimamente interligadas. Só indirectamente falarei de identidade, açorianidade, portugalidade (farei questão de referir Camões), luso-americanidade, ou identidade europeia. Concentrar-me-ei antes em torno da questão dos valores e ideais da modernidade por, ao fim e ao cabo, dizerem respeito quer a açorianos e portugueses quer a luso-americanos e europeus.
Devo confessar que, estando sem tempo absolutamente algum para redigir este texto antes de sair dos Estados Unidos, iniciei a escrita dele em Paris e terminei-o em Lisboa – tendo-se as notas que fui registando alterado conforme o meio em que eu circulava. Ainda nos EUA eu pensara na problemática que afecta a minha geração de emigrantes açorianos e portugueses em geral, confrontada com uma situação económica que não garante, pelo menos para os que sempre sobreviveram do trabalho nas fábricas, um futuro tão risonho como o que encontraram ao chegar então à terra dos seus sonhos. Depois, em Paris, por sugestão de um amigo, comprei e li o romance La Confession de Castel Gandolfo, de Pietro De Paoli, que imagina o que terá sido a conversa entre Bento XVI e o seu antigo colega de Faculdade, o famoso teólogo Hans Küng, durante uma suposta visita deste último. O livro é, no fundo, uma reflexão sobre a modernidade, excelente porta de entrada para um dos temas desta intervenção e a ele recorrerei. Ainda nesta cidade, deparei com outro livro que comprei e comecei a ler – De quoi l’avenir intellectuel sera-t-il fait? – um inquérito a vinte intelectuais franceses sobre o futuro que eles julgam ser o que nos espera. Entretanto, via Internet, leio, num jornal português, a notícia de um discurso do Presidente da República lamentando a falta de rumo em Portugal. “O país está sem rumo e sem confiança no futuro”, nas palavras de Cavaco Silva citadas pelo jornal. “Os portugueses perguntam-se todos os dias: para onde é que estão a conduzir o país? Em nome de quê se fazem todos estes sacrifícios?” – dizia o Presidente português, na sessão solene do 36.º aniversário do 25 de Abril, na Assembleia da República. Noutro jornal, já em Lisboa, dei com um artigo a fustigar duramente o Governo por ter feito as pessoas pensarem que Portugal tinha finalmente entrado em velocidade de cruzeiro no mundo europeu do desenvolvimento, da justiça, da qualidade de vida e, se calhar mesmo, no nirvana. Em nenhuma linha o articulista responsabilizava o cidadão português por alguma coisa do que lhe está a acontecer. Tudo é culpa do Estado e dos seus líderes.
Vem de longe esta nossa tradição de se culpar o Estado. Fomos o que fomos no passado por causa da Inquisição, da Monarquia, da República, do Salazarismo, do 25 de Abril e agora da Europa, e sempre do Governo. A nossa propensão para acusar os outros dos nossos próprios males faz-nos esquecer que, ao insistirmos nessa tecla, não passamos afinal de marionettes cujos cordelinhos são puxados por forças que nos transcendem. Quer dizer, por toda a gente menos por nós que, ao fim e ao cabo, nos auto-reduzimos a pobres de espírito sem qualquer liberdade de pensar e muito menos de agir.
Daí que, como resultado de um mergulho de duas semanas na Europa, tenha finalmente decidido falar não especificamente dos Açores ou dos seus emigrantes no continente Americano, mas de nós, açorianos e portugueses, no contexto da modernidade. Já Antero tinha dito que, ao fim e ao cabo, do ponto de vista da cultura – isto é, do nosso modo de sentir e agir – Portugal era uma parte da Ibéria e os Açores um aditamento português.
Se não bastassem jornais europeus a confirmarem o sentir dos intelectuais franceses no volume sobre o futuro que atrás referi, mais do que simbólica seria a nuvem que tem pairado nestes últimos tempos sobre a Europa e quase a paralizou. (Na Internet circula uma piada de humor negro sobre o testamento que a economia da Islândia terá deixado ao falecer: Espalhem as minhas cinzas pela Europa inteira. De facto negro como a nuvem mas, como quase sempre acontece no humor, retirado o lado caricatural, fica algo – neste caso por sinal profundo – que nos deve levar a pensar). Na verdade, o vulcão islandês de impronunciável nome que lançou imensa camada de espesso fumo, sobreveio carregado de simbólica lava a extravasar das entranhas da consciência europeia. A imagem televisiva daquele escocês furibundo no aeroporto Eu odeio a Islândia! – uma pacífica e bela ilha que só quem nunca visitou pode insultar – foi vigorosamente emblemática.
Por sinal o vulcão europeu tem vomitado outras lavas mais arrasadoras. Há poucas semanas, até o circunspecto The New York Times, sensível a material politicamente incorrecto, se fez eco do acrónimo PIGS (porcos), hoje em elevada circulação Europa fora, nos media e na miríade de estradas da Internet. O jornal noviorquino não se pode ter esquecido da origem americana do derrogatório epíteto. O termo, na verdade, é muito antigo e teve origem nos EUA, creio que na década de 1910-1920, altura em que uma grande vaga de emigração arribou àquelas margens. Era um acrónimo para designar Polish, Irish, Greeks and Slavic e contrapunha-se a WASPs (vespas) – White, Anglo-Saxon, Protestants. Com o rodar dos anos, as correntes emigratórias alteraram-se, sucendendo-se emigrantes provenientes de outros grupos étnicos. PIGS passou então a significar Portuguese, Italians, Greeks & Spanish.
Entretanto, impelido por novas vagas do politicamente correcto, o termo saiu de circulação e, durante três décadas, não topei dele rasto. Só voltei a encontrá-lo há semanas, para espanto meu, nesse artigo de The New York Times sobre a situação económica europeia. Como tanto a Irlanda como a Itália figuram no grupo dos países ainda no encalço do comboio da vanguarda europeia, apareceu agora essa engordada versão, o tal PI(I)GS. Pelos vistos, não estão definitivamente sepultados os espectros que no século XIX ditaram preconceituosos e influentes livros propondo loucos devaneios sobre raça e alma nacional, levando à posterior elaboração de conceitos como o Homo Europaeus (teutónico, protestante) e o Homo Mediterraneus – tema que tanta tinta fez correr sobre a decadência (para muitos, a inferioridade) da raça latina. (Mas, espectros e preconceitos à parte, reconheçamos que a esta nossa “raça” ainda restam culpas das quais não podemos facilmente ilibar-nos).
Portugal emerge frequentemente na cena internacional neste contexto de países meridionais em dificuldade de desenvolvimento e, entre nós, pressente-se hoje de novo uma dose de pessimismo colectivo nada benéfica. Recordo-me de uma perspicaz crónica de Mário Mesquita, há muitos anos, quando era director do DN, sobre o ciclista Joaquim Agostinho, que tinha momentos de euforia magnífica seguidos de depressões que o deixavam de rastos. Mário Mesquita usava esse caso como simbólico do país. Na verdade, quem
não se lembra das euforias do 25 de Abril, de Timor-Leste, da Expo 98, do Euro 2004? Depois vêm os momentos depressivos, e o presente promete vir para ficar porque neste momento é a Europa na sua globalidade que o vive. Os europeus do Centro e Norte cansaram-se de investir e de crer nas boas palavras dos europeus do Sul persuadidos de que enterrariam sem problemas quatrocentos anos de atraso porque agora já éramos outra gente, de outra – nova – estirpe. Aí sim, esse articulista do diário português que acima mencionei poderá ter razão. Os portugueses acreditaram nas promessas que o Governo enviava para a Europa para conseguir mais fundos e que, aliás, Bruxelas queria ouvir a fim de os autorizar.
Que mensagem posso então trazer-vos eu, açoriano na diáspora que salta frequentemente sobre as margens do Rio Atlântico e a quem perguntam com insistência: Como reencontras Portugal? Como reencontras os Açores? Perguntas a que procuro dar a volta com a evasiva: Bem, ainda foi há um mês que estive aqui.
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Texto lido na sessão comemorativa do Dia de Portugal, de Camões e da Comunidades Portuguesas, promovida pelo Gabinete do Representante da República, Angra do Heroísmo, 10 de junho de 2010.
Sobre o autor: Onésimo Teotónio Almeida
Nasceu no Pico da Pedra,na Ilha de S. Miguel, Açores. Vive desde 1972 nos EUA. Doutorado em Filosofia pela Brown University (1980) é Professor Catedrático no Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros da Brown University, Providence, Rhode Island, EUA. Divide a sua atividade literária entre o ensaio académico e a escrita criativa, colaborando regularmente também em publicações culturais como a Revista LER e o Jornal de Letras, de Lisboa. Publicou no Reino Unido uma tradução de contos luso-americanos extraídos do livro (Sapa)teia Americana. A colectânea intitula-se Tales from the Tenth Island.(2006). De entre os seus livros contam-se, no teatro: Ah! Mònim dum Corisco! (Eurosigno, P.Delgada. 1991) e No Seio Desse Amargo Mar (Salamandra, Lisboa. 1992); na crónica, os mais recentes são: Que Nome é Esse Ó Nézimo? (Salamandra, 2ªed. Lisboa. 2002), Viagens na Minha Era (Salamandra,Lisboa,2001) e Livro-me do Desassossego (dia-crónicas)(Temas e Debates,Lisboa.2006); no conto, (Sapa)teia Americana (Salamandra,2ªed .Lisboa. 2000),na prosa poética: Onze Prosemas (e um final merencório)(Ausência,Vila Nova de Gaia.2004,”Aventuras de um Nabogador & Outras estórias-em-sanduíche”(Bertrand, Lisbo. 2007)e organizou com Leonor Simas-Almeida “Eduíno de Jesus: A ca(u)sa dos Açores em Lisboa, homenagem de amigos e admiradores.” Angra do Heroísmo, Terceira: Instituto Açoriano de Cultura,2009.