De onde, pois, os abalos provocados pela pós-modernidade?
Poupar-vos-ei aqui a uma longa resposta. Apontarei apenas o impacto causado pelo reconhecimento de que nenhum dos valores da modernidade pode ser absoluto, porque eles entram em conflito entre si. Basta lembrarmo-nos das lutas em torno da primazia da liberdade ou da justiça que estão na base da ainda recente Guerra Fria entre o Ocidente liberal e o mundo socialista. Esta e outras constatações constribuiram para a instauração generalizada do síndroma de que a ética agora é outra, ou de que já mesmo não existe. Ou que, se existe, é a de cada um fazer o que melhor lhe aprouver. Nos países modernos a transição tem vindo a acontecer mais lentamente, permitindo a prevalência de normas sólidas, aos poucos inseridas na legislação e implementadas pelos tribunais, que as reajustam a novas situações. Entre nós, tudo ocorreu muito rapidamente entre o abandono de um muito tardio Antigo Regime aliado à Contra-Reforma, como foi o salazarismo, e o pós-25 de Abril, desvanecido que foi o idealismo socialista trazido pela Revolução dos Cravos. Aconteceu logo a entrada na Europa, acompanhada de todas as mordomias concedidas aos neófitos do Sul para compensá-los do secular atraso, e de repente gerou-se entre nós a ilusão de que conseguiríamos comprimir quatro séculos em poucas décadas. Instalou-se no nosso imaginário colectivo, sobretudo entre os jovens formados nesse período de enormes e rápidas transformações sociais e culturais, a noção de que nos tínhamos tornado europeus e modernos afinal sem ter sido preciso lutar por isso, como fizeram os outros. Em países como o nosso, que tiveram de dar saltos históricos e de ser ajudados financeiramente para poderem entrar na divisão da frente, vulgarizou-se a ideia de que o passado estava passado e que entraríamos agora numa nova ordem em que o Estado Social nos garantiria a existência por mero direito adquirido, enquanto a nós só competiria gozar, usufruir desse novo estatuto, inclusive com aposentações aos cinquenta anos, de modo a podermos gozar a vida ao máximo. (Os bancos ajudaram a cimentar essa ideia com o crédito fácil!) Assim, quem precisava mais de estudar, de trabalhar, de se aperfeiçoar, de se ajustar profissionalmente aos novos tempos se a Constituição a priori garantia tudo? Era como se cada português, por mera sorte tivesse casado com uma viúva rica, a Europa, e o novo estatuto lhe permitisse a partir de então limitar-se a gozar os rendimentos. O problema pôe-se mais agudamente para as gerações mais novas, habituadas apenas ao novo estilo de vida. Para elas (ou pelo menos para uma parte delas), as regras do jogo haviam mudado completamente. Na pós-modernidade os ideais passavam a ser outros e a própria ética também.
Na verdade, os mentores deste imaginário são em grande parte apenas gente com voz nos média, figuras da TV e das artes do espectáculo que têm uma boa vida assegurada e nos deixam ao frio (sem razões positivas para o que quer que seja, a não ser a defesa dos pequenos interesses de cada qual), sem se aperceberem de que afinal atiraram fora o bebé juntamente com a água do banho. Com efeito, o paradigma da apregoada pós-modernidade, em que supostamente vivemos, não só não acarreta inevitavelmente consigo o derrube das razões da modernidade, como não deve sequer procurar fazê-lo, sob risco de se destruirem importantes conquistas alcançadas ao longo de séculos.
Que conclusões práticas – ou pragmáticas, se quiserem – extrair do que atrás fica dito?
Primeiro: Que, mau grado os abusos e erros de algumas posições teóricas e práticas dos contrutores da modernidade, nós hoje interiorizámos mais profundamente do que nunca o núcleo duro dos valores da mesma modernidade: a liberdade e a justiça acima de tudo, com a democracia como seu garante, seguidas da crença no progresso, isto é, na importância da ciência e da tecnologia. Temos, é certo, a consciência de que esses valores só são absolutos em teoria e que, na prática, a dificuldade está em harmonizá-los devidamente – (os brasileiros dizem: na prática, a teoria é outra!).
Segundo: O facto de isso ser um bico de obra e de exigir lutas constantes não diminui em nada a nossa crença nesses pressupostos como ideais, por vezes inconscientes, das nossas atitudes colectivas no Ocidente de hoje.
Acredito que este aspecto é fundamental: as dificuldades em concretizarmos os ideais da modernidade não legitimam a sua rejeição pois, no que a cada um de nós concerna, deles nunca abrimos mão quando se trata de defender os nossos direitos. Ora num paradigma como o nosso em que a religião recuou para a esfera individual (e, recordo, falo aqui em termos europeus), o diálogo e a negociação colectiva não podem recuar perante a evidência de que os direitos dos outros não são diferentes dos meus. Logo aí se inicia o processo de busca do equilíbrio entre as minhas liberdades e as liberdades dos outros. Equidade, fairness (em inglês), ou justiça como equilíbrio ideal entre liberdades individuais são tudo termos e expressões linguísticas que captam e condensam o resultado de uma longa caminhada humana de busca de uma fundamentação racional para o nosso viver em sociedade, remontando a Confúcio com a sua Regra de Ouro que o Antigo Testamento também integrou. Afinal, toda a história da Ética tem sido um infindável percurso de aperfeiçoamento dessa concepção, ao longo dos séculos. Por mais disputada que ela seja, a grande questão não está em serem os princípios da justiça e da liberdade as escolhas fundamentais e últimas dos seres humanos, mas a de saber qual a prioridade entre os dois. Sem que nenhum deles per se seja tão pouco discutível.
Tenho plena consciência de que a construção de um ideal não implica de modo nenhum que ele seja posto em prática, mas a verdade é que, sem aquele, não se abandonará nunca o ponto de partida. O marxismo apontava ideais, mas o seu erro foi fazer-nos crer que a sua utopia era não só alcançável mas inevitável porque científica. Os ideais da modernidade não se pretendem científicos; eles são uma construção negociada e esforçada de vários milénios e são, feliz ou infelizmente, o melhor que neste momento se consegue. Apesar de todas as suas limitações e dificuldades ao serem postos em prática, são a única esperança que nos pode fazer elevar um pouco o espírito acima do cinismo céptico e ameaçador dos que, advogando a deserção, inerentemente fomentam a predominância do status quo e do lado negro do mundo.
Regresso ao início desta minha intervenção e à falta de rumo no país, apontada pelo nosso Presidente da República. Ela não é, aliás, apenas portuguesa, se bem que entre nós adquira uma faceta bem especial. Explico-me recorrendo a uma passagem de uma obra literária. Na década de 80, o romancista Almeida Faria publicou um romance intitulado Lusitânia. Fundamentalmente uma troca de correspondência entre dois portugueses, um deles a residir em Itália. Há uma carta enviada de Portugal, datada de 25 de Abril de 1974, em que o subscrevente informa o familiar em Itália de que naquele mesmo dia falecera o pai. Curiosa, muito curiosa mesmo, essa intuitiva criação do escritor. Obviamente freudiana, trata-se de uma alusão ao desaparecimento da figura paterna como símbolo da autoridade, seguradora dos valores do passado. Com o 25 de Abril foram quatrocentos anos de peso sobre a história portuguesa que desapareceram e a euforia da festa não nos permitiu divisarmos (pelo menos colectivamente) que, quando os nossos pais morrem, quem fica com a responsabilidade sobre os ombros somos nós. Chegou-se a pensar que ela nem era necessária. As gerações novas cresceram num outro paradigma em que as liberdades individuais são um dado adquirido e as conquistas sociais são também de geração espontânea e que emergem como se de direito. A nossa sorte portuguesa foi a autoridade, o novo pai (ou talvez padrinho) &nd
ash; e reporto-me ao romance Lusitânia) – nos ter vindo da Europa, melhor, da União Europeia. Embarcámos nela como se para uma nova India, e acreditámos que tínhamos entrado na modernidade sem passar pelas etapas duras que permitiram a construção dessa mesma modernidade nos países do Centro e Norte da Europa e nos Estados Unidos – tendo este último país sido afinal a primeira grande tentativa mundial de se pôr em prática a ideia europeia de modernidade.
Agora a Europa do Centro e do Norte reconhece não poder estender ilimitadamente os benefícios da chamada solidariedade e procura reajustar-se, e até reconstruir-se, respondendo a desafios que lhe ameaçam as estruturas mais profundas, essas mesmo que foram sendo construídas ao longo de séculos. Essa novel situação força-a a deixar um pouco de lado aqueles a quem deu as mãos nos últimos vinte anos, ao abrigo da ideia da consertação e coesão sociais. Sentimo-nos de novo sem pais e impelidos a acusar os governantes de nos terem dado a impressão de que éramos europeus e modernos de direito e para sempre. Não, não o fomos se não por empréstimo, porque a modernidade constrói-se lenta e progressivamente, nunca com a rapidez que supusémos quando as bolsas da Europa se nos abriam generosamente. Os nossos emigrantes sabem bem quanto custou, e continua a custar, apressar o passo para acompanhá-la num país como os EUA.
Não quero vir aumentar a dose de pessimismo português. (Conhecem a do pessimista que dizia que isto está tão mau, tão mau que não pode ficar pior; ao que o optimista respondeu: Ai pode, pode!)
Há que nos compenetrarmos de que os avanços que conseguimos até aqui, em tão pouco tempo, foram – muitos deles – conquistas que nos chegaram gratuitamente. Teremos de nos capacitar de que no mundo considerado moderno, lá fora, continuam a imperar as antigas regras de convivialidade cívica que levaram à modernidade. Mais, as velhas regras da ética humana herdadas dos gregos e aperfeiçoadas ao longo dos séculos permanecem. Elas não foram assassinadas com a morte do pai no 25 de Abril. A morte desse pai abriu-nos a porta para nos juntarmos aos que iam à nossa frente. Mas as regras que acompanham o dia a dia deles prevalecem e vão perdurar. O facilitismo, o chico-espertismo, o arrivismo, o imediatismo, o tudo-serve e tudo vale não conduzem a nada a não ser a ilusões de percurso que nos acalentam por uns tempos. Só depois, ao acordarmos, nos damos conta de termos estado patinando sempre no mesmo lugar.