O Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas é um dia de celebração e eu queria deixar aqui uma mensagem positiva. Prometi referir Camões e vou fazê-lo. Há dias, numa viagem de Paris para Lisboa, viajei ao lado de um iraniano a fazer doutoramento em Informática na Universidade de Ottawa, no Canadá. Vinha a Portugal pela primeira vez, a um congresso, e tinha perguntas sem fim. Falou-me do Irão e do Canadá, da dureza do trabalho na sua universidade, mas quis saber de Portugal. Interessava-se por poesia e ouvira falar de Fernando Pessoa. Desenhei-lhe num mapa como chegar ao Chiado e à Brasileira. Inscrevi nele o Largo de Camões como referência e o iraniano-canadiano quis saber quem era. Outro poeta. Sim, Portugal é um país de poetas. E lá tive de falar dele e de “Os Lusíadas”, de como Camões arranjou uma forma engenhosa de pôr Vasco da Gama a narrar em verso ao rei de Melinde a história de Portugal em resposta à sua vontade de saber de onde vinham aquelas naus cheias de gente estranha em cata de canela. Tudo isso expliquei ao Ali, mas evitei falar-lhe do pessimismo de Camões no final do seu poema, e da sua vida, ao ver que Portugal se deixava apanhar nas malhas de antigos vícios, numa “apagada e vil tristeza”. E também não o farei aqui. Basta desse derrotismo que sempre nos corroeu. Temos tanto de invejável em Portugal – e particularmente nos Açores – que muitas vezes nem disso tomamos consciência. Há que nos capacitarmos disto. Mas cabe-nos igualmente tomar consciência da dimensão imensa das realidades que nos rodeiam e do mundo em que estamos inseridos e deixar de acreditar que os governos é que têm, exclusivamente, as soluções dos nossos problemass em suas mãos. É verdade que as pessoas acabam por crer no que lhes é dito nas campanhas eleitorais. Mas deveriam ser mais capazes de discernir por si que o seu voto não é uma entrega cega nas mãos dos líderes, nem estes são os responsáveis por nós e pelos nossos destinos. Não estou aqui a desculpabilizar os governantes, mas numa democracia activa os cidadãos não alienam nos governos as suas próprias obrigações, antes estão vigilantes e são intervenientes, porque a sua acção continua necessária no dia a dia até mesmo nas pequenas coisas, pois são elas que constroem ou permitem as grandes. Quer dizer, o nosso voto não implica um desfazermo-nos da nossa responsabilidade individual em todo o processo cívico. Em relação ao nosso pessimimo atávico, só sairemos dele se nos empenharmos verdadeiramente nesse esforço individual. Fernando Pessoa viu isso há um século e concebeu uma engenhosíssima forma para o país sair do marasmo e do fatalismo derrotista. O seu famoso livro Mensagem era apenas a parte mais visível, de apelo junto das massas, de um plano bem complexo e, por sinal, altamente inteligente. Pessoa queria pôr o país a olhar para o futuro e não para o passado. Aliás, quando se fala de identidades culturais, – e aqui de propósito eu procurei não falar delas pois já o tenho feito muitas vezes noutros lugares – a conversação dinâmica, capaz de produzir frutos não é a que se concentra no passado, naquilo que fomos, mas a que se reporta ao futuro, e foca aquilo que queremos e podemos ser. Os EUA são um excelente exemplo disso e, como tal, deveriam ser um modelo para a Europa no que à conversação sobre identidade diz respeito. Lá ela centra-se no futuro, nos ideais colectivos que a sociedade quer para si e pretende pôr em prática, através de políticas colectivas e intervenções individuais. A ideia de Europa também só terá sucesso se deste lado do Atlântico se fizer o mesmo. Não nos podemos fixar morbidamente nos passados de cada país porque eles são uma história de divisões e guerras. Não que se deva ignorá-los, mas é preciso fazer esses mesmos países, as colectividades culturais que compõem a Europa, concentrarem-se nos ideais que os devem nortear, dar rumo colectivo à União e levá-los a agir em conformidade. A Europa ainda não conseguiu um projecto melhor do que o da modernidade. Era aliás essa a mensagem do romance La Confession de Castel Gandolfo de que atrás falei, em resposta ao pessimismo que por todo o lado grassa. Os valores da modernidade estão inscritos na constituição europeia e na dos Estados democráticos que a constituem. Como estão também nas dos EUA e Canadá onde vivem tantos portugueses e açorianos. Na experiência histórica desses paíse está escrito o segredo do seu sucesso, tal como muitas das virtudes que o permitiram – afinal várias delas virtudes dos nossos antepassados que, entre nós, com a morte simbólica do pai no 25 de Abril, muitos supuseram obsoletas. Não. Elas não viraram nada obsoletas, como aliás tão bem prenunciou o nosso grande Antero de Quental ao identificar há quase um século e meio os males da pátria e ao sugerir pistas para a sua irradicação. O seu projecto continua actualíssimo e nada tem a ver com facilitismo, com golpes de esperteza, nem com ultrapassagens das regras elementares da ética, tão sabiamente elaboradas ao longo de séculos. Muito menos com o seu fácil abandono por parte dos que se quiseram europeus enquanto da nascente jorravam subsídios, mas já querem regressar não sei aonde, desde que as águas do manancial amansaram e ameaçam ficar num fio.
A euforia europeia de há uma década, a apontar para a última grande utopia de um Continente que já acalentou tantas e falhou em igual número, tem – infelizmente – os horizontes adensados e os voos – não apenas os dos aviões – reduzidos em quantidade e em altura, para grande pesar de quantos se têm deixado embalar por este último sonho de união familiar: a modernidade europeia, final e felizmente tornada realidade. Que o amainar de explosões do impronunciável vulcão Eyjafjallajökull e o regresso à serena Islândia cheguem prenhes também de nova carga simbólica sobre o futuro da Europa, que não tem para recuar senão um caminho tragicamente minado. Na verdade, só lhe resta a hipótese de olhar em frente e inventar soluções para inevitáveis querelas de família, em vez de alimentar intrigas e ódios de morte entre vizinhos. Porque o futuro de Portugal está aliado ao futuro da Europa, sem saída para outros horizontes. O dos Açores também. As Américas já nos serviram em tempos de aperto. As Áfricas e Indias já deram os seus frutos e perdemos há muito a oportunidade de lá fazer as nossas Américas.
Para quem esperava que, de acordo com o título anunciado, eu falasse de identidade, lembro que de facto foi isso que eu fiz. Preferi no entanto falar de identidades voltadas para o futuro, que na Europa significa a integração dos vários passados, mas com mira em ideais construídos na própria Europa ao longo de séculos. Aqui, no meio do Atlântico, durante séculos actuámos como uma pirâmide com o vértice (a camada mais alta da sociedade) voltado para o Continente português e para a Europa, sobretudo a França. A base (a população em geral), essa voltou-se há quase três séculos para as Américas, primeiro para o Brasil, depois para os EUA e mais tarde para o Canadá. Se bem que seja importante continuarmos a lembrar-nos da importância das ligações com ela, com benefício para ambas as partes, há que ser realista e compreender que os Açores, tendo continuado – e muito bem – umbilicalmente ligados a Portugal, têm apenas a Europa como salvação. E todos nós, de um lado e do outro do Atlântico, temos apenas a modernidade como projecto que nos pode salvar da barbárie. Se, no cristianismo, a promessa de salvação veio gratuitamente, no nosso futuro europeu ela virá com custos e só se todos nos empenharmos e fizermos como aqueles que, com o seu avanço sobre nós, nos proporcionaram anos de vacas gordas como os últimos vinte anos que nos aconteceram de mão beijada.
Não temos que deixar de ser o que fomos, pelo menos no seu essencial. Mas teremos que recuperar algumas das virtudes esquecida
s e que julgávamos obsoletas ou desnecessárias no futuro em que leviana e ingenuamente muitos de nós acreditaram. Os europeus poderão querer vir ter connosco para reencontrarem aqui um Museu do Passado, mas nós temos que olhar para eles como um figurino do futuro. Os benefícios serão sobretudo nossos.
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Imagem: Lagoa das Sete Cidades,I.São Miguel,Açores
foto de Lélia Nunes,2010