Açorianidade – algumas (re)considerações*
Hoje repete-se clichés sobre a açorianidade que nunca foram propostos, nem legitimados ou defendidos por mim ou por colegas meus de geração. Por isso acho que vale a pena recordar aqui pelo menos os parágrafos finais da comunicação “Açorianidade: alguns equívocos estéticos e éticos”, que li no simpósio sobre Literatura Açoriana por mim organizado na Brown University, em 1983, e mais tarde publicado no volume das actas (“Da Literatura Açoriana – Subsídios para um balanço. Angra do Heroísmo: Secretaria Regional da Educação e Cultura, 1986):
No caso que nos interessa aqui, a açorianidade, insiste-se em que se trata de um termo vago. Ou aberto, se preferirem. E, logicamente, não poderá deixar de sê-lo. Deverá ser a sobreposição de todas as visões que dela se tem. De todas. Quando muito, por facilidde de referência, poderá falar-se da média, do seu uso na maior parte dos casos. Mas deixando-a sempre em aberto, tornando sempre possível o surgimento de mais uma. “O mundo é o meu mundo”, na afirmação lapidar de Wittgenstein. Açorianidade é a açorianidade de quem a diz: a sua visão sobre o seu modo de estar-se no mundo açoriano e do que se lhe deverá seguir, ou, para os de fora, a sua visão da mundividência, do ser e do dever ser dos Açores. Açorianidade é aquilo que são e querem ser os açorianos. E esse conceito alargar-se-á sempre que o mundo de qualquer açoriano se alargar mais. É a açorianidade que se alarga também. Mesmo quando de lá se sai. As características comportamentais poderão ser um modo de ser especial que viaja com cada açoriano, por força de mecanismos materiais. Dentro ou fora das ilhas. A açorianidade deve ser acima de tudo e apenas, um assumir-se o passado tal como foi, um interessar-se pelo presente e preocupar-se com o futuro. Assim mesmo vago e indefinido, o amor à terra e à gente permite muitas maneiras e estilos. É possível cantá-lo nos tons menores, melancólicos dos “olhos pretos”, ou agressivos do “ladrão, ladrão”, alegres da “chamarrita”, ou terra a terra da “sapateia”. Mas não só. Ainda que o passado em nós deixe a marca do gosto por esses tons especiais e particulares com que crescemos entre os matizes sem fim dos verdes e dos cinzentos das terras e dos mares desses Açores.
Mas uma coisa é aceitar, assumir o passado – componente importante para o equilíbrio psicológico individual e colectivo – e outra é usá-lo como figurino do futuro. A açorianidade não deve acarretar consigo imperativos metafísicos de insularização para além dos que o mar impõe. Ela deve ser acima de tudo a aceitação dos Açores como lugar de nascença que viaja connosco, não como freio mas como presença afectiva. Ponto de partida e não ponto de chegada. Na história, o é faz-se no sendo. Se a ideia de açoriano hoje nos vem do percurso histórico desse povo até aqui, também no futuro ela sê-lo-á, e o que daqui até lá formos estará incorporado nesse futuro conceito de açorianidade. Para bem ou para mal nosso, os grupos culturais nunca se afastam radicalmente do seu passado, mas também não estão predestinados a repeti-lo. Nas continuidades culturais há lugar para desvios, alterações, transformações, aquisições e até mesmo descontinuidades, que podem ser evidentemente julgadas sob diversíssimos pontos de vista e consideradas cada uma delas como progresso ou regresso, evolução ou decadência. O leque é aberto e relativamente vasto. As opções, felizmente, variadas. Se é possível chegar-se próximo de um consenso sobre o passado da açorianidade – o que ela foi até aqui – não se pode fazê-lo para o futuro. Ele constrói-se no acontecer cultural do dia a dia dos açorianos.
______________________________________
* Excerto da comunicação apresentada no colóquio “Mundividências da Açorianidade”, realizado na Universidade dos Açores em Novembro deste ano
Foto:acervo Blog