Afinal… quem sabe?
Há neste livro um certo “cê que sabe” que afinal não sabia nada. Ou, com mais acerto, uma pequena lição que dediquei à Lélia sobre o uso do “c” mudo em Português de Portugal que perdeu a validade. O Cruzeiro, que eu lia na infância, às vezes começando pela última página da Rachel de Queiroz, já vinha, sem que eu pudesse imaginá-lo, escrito quase inteiramente segundo o Acordo Ortográfico de mais de meio século depois. Seria premonição dos irmãos brasileiros, que herdaram esta língua para a temperarem com sabores tropicais? Porque a gente lê o Vinicius, do Rio, ou o João Ubaldo, de Itaparica, ou o Assis Brasil, de Porto Alegre, ou a Lélia Nunes, de Tubarão, e fica a invejar aquele discurso luminoso, que se fosse pintura seria impressionista, impossível de igualar na fonética lusa.
Ora veja-se esta frase que a certa altura acontece Na Esquina das Ilhas: A “benzação” na conjunção dos elementos da natureza é oração, é louvação da criatura ao Criador, à criação e tudo que deva ser louvado. Em português de Portugal soaria mal aparecer cinco vezes o ditongo “ão” em tão poucas palavras. E isto porque fizemos dele uma espécie de fleimão da fonética, que piora consideravelmente quando dito por um ilhéu de Ponta Delgada ou por um continental do Porto. Mas no português do Brasil, seja do Rio, do Recôndito ou de Santa Catarina, ele é como que uma explosão de cor. Ou então um supremo exemplo em a Mulher que Passa, do Vinicius. Que fica e passa, que pacifica, um dos mais belos versos da Língua Portuguesa, tanto poderia ser assim como Que fica e passa, que passa e fica, que o efeito fonético e o sentido emocional seriam os mesmos. Em português europeu, jamais.
Olhando desta Esquina, podem avistar-se pessoas, tradições e sítios que se assemelham nas diferentes ilhas desta viagem. Lélia Nunes, que ciranda de umas para as outras com a liberdade de uma andorinha-do-mar (que aqui se diz garajau), teceu uma belíssima manta de retalhos. Recolheu-os nessa pouco mais que imitação de ilha (ter o continente à distância de uma ponte não é viver numa ilha a sério…) e nestas, a que chama “ilhas de lá”, para as quais não há ponte que lhes valha. Depois uniu-os com o fio do sentimento, e a manta ficou capaz de aquecer a nostalgia de querer ser ilhéu noutro lado. É que não faltam catarinenses que gostariam de ter residência fixa nos Açores, e açorianos que sonham com Santa Catarina como o paraíso ideal. O curioso é que nesta se vive como se de uma ilha de verdade se tratasse, uma espécie de ilha voluntária, portanto. A grande diferença é que por cá as ilhas só podem alongar-se para o mar, que faz parte delas, e por aí cresce-se terra adentro, para a imensidão do maior feito luso-brasileiro, o Brasil. O tal “Brasil brasileiro” de Eça de Queirós, a mais improvável das nações mas uma das mais unitárias do Mundo, apesar de qualquer revolução Farroupilha e suas imitações que lhe ameaçaram a unidade.
A certa altura topa-se na Esquina das Ilhas com Franklin Cascaes, esse cultor de lendas e de palavras que em muitos casos continuam a ser açorianas. Homem de uma ternura imensa, que aprendeu a ser povo sendo povo, a única maneira de saber sê-lo de verdade. Por aqui, o seu simétrico será o Eduíno de Jesus, que aparece na PARTE II do livro. Algo mais catedrático no percurso, mas a tratar a linguagem dos humildes com desvelos de uma sabedoria imensa. Um e outro, cada qual na sua margem do Atlântico, sempre souberam que é a memória popular que guarda os tesouros das tradições e das palavras que não surgem nos roteiros culturais ou não gozam de assento nos dicionários.
E Willy Zumblick?… Os seus quadros são uma celebração da vida, ou um gesto de carinho para com o povo humilde, ou a exaltação do culto do Divino, também emigrado em meados do século XVIII para se fazer tão catarinense quanto açoriano. À medida que se foi afastando do naturalismo puro pareceu aproximar-se cada vez mais da realidade absoluta. Não sei bem porquê, mas Zumblick traz-me sempre à memória o António Dacosta, que compunha poesia com os pincéis e também tratou temas do Espírito Santo.
Pares no ofício das artes, e até na arte de bem escrever o pensamento, são Vera Sabino e Tomaz Vieira. Ela na ilha de cá (segundo o ponto de vista da Lélia), ele numa das ilhas de lá, a de São Miguel. Curiosamente, Vera, na tal ilha que o não é a sério, compõe cenários e personagens de um colorido exuberante, mas que sem dificuldade podem identificar-se como catarinenses. Tomaz é mais contido no uso das cores, expõe mais a própria alma tendo outros corpos ou seres como pretexto.
Mas a semelhança mais flagrante, mais imediata, é entre um certo bar à beira da enseada de Pântano do Sul e outro sobre a baía da Horta, na ilha do Faial. Ambos são ponto de encontro de gente do mar e uma espécie de posto de correio. O Café Sport só difere do Bar do Arante por ter uma missão mais universal – recebe correspondência de todo o Mundo para qualquer navegador que tenha a Horta incluída na sua rota.
No entanto, e sem que se perceba bem a razão, até ao final do século XX éramos quase desconhecidos entre nós. Raros seriam os catarinenses que não confundissem vagamente os Açores com uma ilha, muito raros os açorianos que soubessem que a alma do Estado de Santa Catarina, maior que Portugal inteiro, estava numa ilha encostada ao continente, com as dimensões aproximadas do Pico. A comemoração do 250º aniversário da primeira emigração açoriana para o Sul do Brasil foi o pretexto para uma descoberta mútua. Abençoadas sejam as comemorações quando não são inúteis! O resultado pode ser um livro como este, que, se não fosse assinado, só se perceberia não ser de autor açoriano por causa do “sotaque”.
A Lélia Nunes é um dos exemplos do orgulho que sentimos pelos nossos antepassados aventureiros. Esses que atravessaram o Atlântico em viagens de medo e morte, fugindo à pobreza que nestas ilhas reinava mais que El-Rei D. João V. Chegaram aí para fazer tudo desde o princípio. Os que se lhes seguiram já tinham os caminhos desbravados e o essencial para a vida garantido. Foi gente nossa, gente açoriana de que a Lélia descende, que defendeu e alargou as fronteiras meridionais e deu origem a dois dos mais ricos e admiráveis Estados do Brasil – Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Como seria bonito saber o que esses açorianos sentiriam se pudessem ler, ou ouvir ler, esta bela declaração de amor que a Lélia foi compondo e publicando em jornais, e agora sai em livro!
Só mais uma nota, um aviso ao leitor. Desculpe algum exagero da autora da obra quando se refere ao escrevinhador desta apresentação. A amizade tem destas coisas, e os exageros bons nunca devem ser levados a mal.
Obrigado, Lélia!
Maia, São Miguel Açores, Julho/ Agosto de 2011
Daniel de Sá