Álamo Oliveira – um romance ou abalo sísmico[1]
Tenho minutos apenas sobre a leitura de Murmúrios com Vinho de Missa, o mais recente romance de Álamo Oliveira e, pace todo o arsenal da ferramenta produzida pela crítica literária moderna, que procurei ler e de que julguei absorver o assimilável, ainda privilegio a regra de fixar por escrito as impressões em rescaldo quente do contacto directo com um livro. Este, por sinal, vinha altamente recomendado, argumento de autoridade, de sabor antigo mas nem por isso de modo nenhum menos corrente. Para mais, fora anunciado como tendo algo a ver com a experiência do autor no Seminário de Angra, minha alma mater. A citação em parangonas na contracapa era nem mais nem menos do que do romancista e crítico Luiz Antônio Assis Brasil, o escritor (e amigo) brasileiro de Porto Alegre que muito prezo, agora ali Secretário de Estado da Cultura [duas dezenas de romances no Brasil, muitos prémios – edições em Portugal: O Pintor de Retratos, Ambar, 2003; A Margem Imóvel do Rio, Ambar 2005; e Um Quarto de Légua em Quadro, Direcção Regional da Cultura (Açores), 2005] Ambar. Cito-o parcialmente: Tenho para mim que este livro é a summa de todas as preocupações de Álamo Oliveira, e, ao mesmo tempo, sua obra prima, reconhecida como das mais importantes da língua comum a toda a lusitanidade.
Um portentoso romance, sem dúvida. Engenhoso na sua concepção, a escrita agarrou-me ao longo das suas 223 páginas. Álamo Oliveira tem o verbo à mão com a metáfora a calhar para, nalgumas quantas frases, dar vida a um momento, pintar uma personagem (ele também é pintor), retratar um sentimento escondido no íntimo dela. Se me pusesse aqui a citar, nunca mais acabaria, tantas são as pinceladas de mestre deste artista da língua. [Vá lá, um exemplo retirado de um abrir do livro ao puro acaso: Roberto de Mesquita prendera-se demasiado ao spleen mortal do seu próprio isolamento. Inventou uma ilha povoada de almas cativas, vestidas com o bolor dos domingos em todas as semanas de tédio. Nunca saberia se a sua casa era uma ilha ou vice-versa. A angústia de qualquer poeta é confundir saudade com solidão e amplidão. (p. 200)] Para Álamo, que optou por se fixar na ilha após a (má) experiência da tropa, viver nela não alimenta ilusões sobre a espectacularidade da paisagem. Ele conhece demasiado nos ossos os longos invernos do clima e das vidas das gentes para se deixar tomar pela magia de pores-de-sol esporádicos, ou pelos fulgores instantâneos de vistas de cascatas (pode ser um recado para mim, que vou às ilhas matar fome de paisagem). Não o deixaram de todo as antigas preocupações sociais tão manifestas já no seu primeiro teatro e poesia, bebidas no espírito do neo-realismo e do cristianismo social dos anos 60, se bem que agora surjam desprovidas de idealismos e envoltas de céptica e cáustica ironia. (Para os desconhecedores dessa sua poesia fica aqui a alta recomendação de, por exemplo, Pão Verde (Angra, 1971) que por se tratar de edição insular, estará mais facilmente acessível em Triste Vida Leva a Garça, que reúne a sua poesia até à data da publicação desse livro pela Ulmeiro, em 1984 )
A história narrada em Murmúrios com Vinho de Missa é um mergulho sem rodeios na universo recôndito, abscôndito mas tacitamente aceite (o don’t ask, don’t tell português, ilhéu e, particularmente, terceirense) de vidas sexuais privadas heterodoxas – no caso, a de um padre – tudo tratado sem acinte e até com comprensão humana, demasiado humana, empática e, no fundo e sem rodeios, corajosa e intencionalmente libertadora.
As duas personagens centrais do livro – o padre Raul e uma sua amiga, a Professora Lucília, leitora de Português na Tulane University, em New Orleans, Louisiana – ocupam capítulos alternados do romance, que saltita entre os Açores e os Estados Unidos, o mesmo universo do anterior Já Não Gosto de Chocolates (1999), fazendo assim da obra mais um exemplo da osmose cada vez mais porosa entre o espaço literário açoriano e o açor-americano. Tudo é narrado por Lucília (no fundo é um romance dela e imensamente sobre ela e a sua relação com a ilha de que se quer despir), os capítulos sobre o padre Raul são rascunhos de um romance que sobre ele a leitora do Instituto Camões destacada nos States, a braços com uma tese de doutoramento, tencionava escrever, com base em revelações da vida privada por ele feitas, precisamente com a intenção de ela lhes dar toque romanesco. São notáveis as divagações de Lucília sobre o peso afectivo da ilha e a distância que dela quis ter ao mudar-se para a América: Acontecem estas clareiras no sossego solitário da minha casa de New Orleans. Assim. A esta distância. Acontecem de forma fugaz e, às vezes, os contornos não são muito nítidos. Na verdade, a minha ilha não é mais do que um ponto geográfico de exclamação, melhor dizendo, de clamação, acompanhado por um grito seguido pelo estupor do pânico. Então, as casas esborralham-se, batidas pelo torpor de uma varinha mágica; a terra abria fendas feitas por invisíveis machados gigantes; desabavam rochas sobre fajãs, como se os demónios brincassem uns com os outros, atirando pedras de funda. Só as pessoas petrificavam de susto, gemendo sobre a ilha que tremia num jogo inominável, sem regras nem compaixão. Minha mãe abraçava-me. Estávamos no caminho como todos os desalojados. E nunca percebi que força mágica nos ajoelhava perante uma coroa do Espírito Santo. Rezámos o terço. Nesse dia decidi abandonar a ilha. (p. 150).
Álamo Oliveira já tinha tratado abertamente o problema da homossexualidade num romance sobre a guerra colonial – Até Hoje (Memória de cão) (1986), romance pioneiro surgido muito antes de o universo literário português levantar o véu do silêncio sobre o tabu. Álamo tinha, aliás, há muito feito também o mesmo em poesia (Cantar o Corpo, Angra, 1979) e Nem Mais Amor Que Fogo (Angra, 1983).
A minha única reserva, julgará o autor ser fruto da ideologia do politicamente correcto: aqui e acolá, vozes insurgem-se – sem nunca o narrador delas se demarcar, antes pelo contrário – contra a obsessão contemporânea com a pedofilia. Não vou cotejar o texto em busca de frases, dispersas mas convergentes, que rigorosamente legitimem a minha leitura da posição ética implícita na narrativa, mas parece-me, no meu modo de pensar que por hábito procura fugir à fúria das correntes, não poder haver discussão nem negociação para os casos de envolvimento de crianças, ou de adolescentes, sempre que existe uma situação de poder (mesmo que apenas simbólico, ilusório ou até falso) sobre eles, da parte da outra pessoa envolvida. Quando não há paridade de liberdade, a decisão fica sempre condicionada de um lado só.
À parte esse reparo (numa troca de correspondência o autor mostrou-se, afinal, de inteiro acordo comigo) estamos perante um grande romance de um grande escritor. Só a limitação geográfica, a praga que afoga as edições ilhoas, poderá impedir que o reconhecimento aqui prestado ao livro e ao autor encontre ecos concordantes noutros leitores no universo bem mais vasto do mundo lusófono.
[1] Álamo Oliveira, Murmúrios com Vinho de Missa (Ponta Delgada: Letras Lavadas, 2013).
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Do Jornal de Letras,Lisboa