Alice da Biblioteca das Maravilhas
(Nota Bárbara de Onésimo Teotónio Almeida)
Eu estava na 3ª classe e, no ano à minha frente, uma aluna da Escola Feminina ganhou um prémio. Não faço ideia se era a nível de Escola, se de Concelho, de Distrito, ou se Nacional. Mas o facto deixou-me de queixo caído: duas prateleiras de livros!
Tenho quase a certeza de que moça se chamava Alice, era morena e de cabelo preto, mais baixa do que eu e de olhos escuros. Falava-se dela na freguesia como uma aluna muito inteligente e lamentava-se não ter podido continuar a estudar, mas os pais não tinham posses. Hoje revejo-a bem moirinha, de olhar penetrante mas recatado porque era essa a obrigação das meninas. Morava na Canada da Maria do Céu, que era ladeada de terrenos cultivados, mais fundos do que o piso do caminho. Depois, a primeira casa à esquerda (não havia habitações do lado direito) era a da Alice (Alice, quase de certeza, mas talvez Maria Alice). Era uma casa cor-de-rosa, de chão térreo, coberto de junco, tudo pobre mas impecavelmente limpo. Estou a ver as duas fileiras de livros junto à parede do fundo no espaço aberto, à esquerda, e que servia de cozinha, casa de jantar e sala.
Como é que eu sei desses pormenores? Porque o prémio – uma colecção de livros da CNPED – Campanha Nacional para a Educação de Adultos – implicava a obrigação de disponibilizar os livros para quem na freguesia quisesse lê-los.
Não faço a menor ideia se lá a casa ia mais alguém, mas fui regularmente buscar livros. Li não sei quantos, um atrás do outro. Lembro-me, por exemplo, de um sobre abelhas, outro sobre o Condestável, e ainda de outro sobre diversos heróis nacionais intitulado Virtudes Que Vêm de Longe. Esse li-o quando fiquei de cama em casa, com sarampo, e por isso não fui à escola. A professora mandava por um aluno “os deveres” para os doentes não se atrasarem. No primeiro dia, esperei em vão pelos meus colegas de classe me quebrarem aquela monotonia horrível trazendo-me o meu quinhão de trabalhos de casa; no entanto, a onda do barulho da rapaziada à saída da escola passou-me pela porta sem ninguém bater. Fiquei desolado.
No dia seguinte mandei recado a lembrar à professora Zélia Bremonte e ela mandou dizer que não me preocupasse e tratasse de me curar. A minha desolação duplicou. E então só tinha os livros da Alice para me entreter.
A verdade é que sonhava ganhar o prémio dela quando também terminasse a minha 4ª classe. Ter aquelas duas prateleiras de livros em casa dava-me voltas ao miolo.
Foi um grande desapontamento. Ninguém recebeu nada, nem nunca mais se falou naquele prémio. Até hoje. Mas a Alice e aquela riqueza que ela tinha ali naquele quarto em duas improvisadas tábuas cheias de livros carregava mais magia e sabia-me bem melhor que os milhares de livros que hoje tenho em casa, nas prateleiras e no chão.