ALMA AÇÓRICA (15) Sou como a maioria dos açorianos ligado ao mar e, depois de um dos meus mergulhos de todo o ano, pensei num poeta terceirense ainda mal divulgado, Emanuel Félix que bem sintetizou este nosso estado de espírito permanente:
“Somos herdeiros da maresia
Que salga os olhos de olhar o mar
E temos rios de lava fria
Que se recusam a desaguar”
A nossa diáspora sempre poderá dizer:
… “We have inherited the sea spray
That makes the sea-gazing eyes salty
And we have rivers of cold lava
Which refuse to flow away”
ALMA AÇÓRICA (16) É sabido que a presença castelhana nos Açores deixou “rastos” diversos. Ainda cheguei a ouvir ” até mais, vou pra´riba” referência a quem tinha que subir uma “presa”…
ALMA AÇÓRICA (17) Há uma certa propensão a afirmar que “a resposta na ponta da língua” seria mais típica do “alfacinha”… como se sabe, pela resposta do corvino a Raúl Brandão, também por cá as nossas gentes cultivam essa “dialética”, como naquele caso do caixeiro viajante que querendo brincar com o significado de “discreto”, para os açorianos, disse a um grupo de velhos pescadores, num daqueles dias de chuva miudinha: ” isto é chuva de tolos que alaga discretos”, a resposta de um velho pescador não tardou, “então vocemecê não se alaga”…
ALMA AÇÓRICA (18) Contrastando com excessivo medo do autoritarismo das entidades policiais de outrora, ficou-me a simpatia pelo polícia Abel, figura imponente que quando via alguém a jogar futebol na rua corrente logo nos dizia : “guardem a bola porque daqui a pouco passa cá um polícia e leva-vos a bola”…nesse tempo de ambiente de “capa de chumbo” perante a autoridade, o polícia Abel era homem de grande descontração…é dele a história que tendo ido namorar na juventude para uma freguesia “fora da sua proteção”, logo lhe apareceram residentes “zelosos” que armados de varapaus vinham na sua direção…ele vendo a questão mal parada pegou também num varapau, olhou para eles e disse-lhes: ” se vocês vão bater em alguém eu ajudo-vos”…e parece que se safou pelo menos desta vez…
ALMA AçÓRICA (19) Os atributos principais que definem os conceitos de “ilha e lagoa” são os mesmos, ou seja, terra e água ainda que colocados de modo inverso (porção de terra rodeada de água e porção de água rodeada de terra…). Vem isto a propósito da força que a nossa terra e a água que a rodeia nos transmite ao longo da vida. Nas mais diversas perspetivas muitos tem relatado esta marca impressiva nos(as) e dos(as) açorianos (as)…Há algum tempo vi uma reportagem na “nossa” (por enquanto)televisão em que um jornalista perguntava a uma criança de 7 anos porque acompanhava sempre o pai na visita a uma fajã, onde tinham uma pequena casa. Respondeu-lhe a criança que ajudava o pai nas lides da horta. Insistiu o jornalista: “e quando não tens nada que fazer?”. ” Quando não tenho que fazer olho para o mar e conto as vagas”… O mar sempre ele…
ALMA AÇÓRICA (20) Lembro-me que nos Açores da década de 1960/70, os brinquedos e jogos de então estavam entre os jogos tradicionais de todo o ano (sobretudo, futebol, “guerra”…) e depois, aqueles que seguiam a as estações do ano (desde o berlinde nas variantes duas e mais “covas”, “damas”, “balamento”…)…No grupo central, pela proximidade da Base das Lajes apareceram os célebres carros de pilhas (como para algumas famílias o então célebre pyrex e outros electrodomésticos…)… Tradicionais eram mesmo os “arcos de arame ou pneu” e brinquedos de madeira…porém, a imaginação também chegava à feitura de “bandas de música” onde os instrumentos eram os “nunus” feitos de cana (Arundo donax sp.) que também servia para fazer “canoas transportáveis”, e, como o automóvel sempre fascinou, era substituído não só pelos “carros de lemos” (de esferas) ou pelas “carracas” que, neste caso, eram construídas por duas rodas e um eixo que as ligava, sobre o qual se prendia uma vara de 1,5 m que se encostava ao ombro, a meio inseria-se um volante… a “carraca” era então o carro de corridas… não era, assim, um tipo de navio utilizado no transporte de mercadorias vulgarizado sobretudo no Mediterrâneo, também utilizado pelos portuguesas na carreira da Índia…
José Contente
(cont.)
Foto de arquivo pessoal: Velas, S. Jorge.