ALMA AÇÓRICA (20) Lembro-me que nos Açores da década de 1960/70, os brinquedos e jogos de então estavam entre os jogos tradicionais de todo o ano (sobretudo, futebol, “guerra”…) e depois, aqueles que seguiam a as estações do ano (desde o berlinde nas variantes duas e mais “covas”, “damas”, “balamento”…)… No grupo central, pela proximidade da Base das Lajes apareceram os célebres carros de pilhas (como para algumas famílias o então célebre pyrex e outros electrodomésticos…)… Tradicionais eram mesmo os “arcos de arame ou pneu” e brinquedos de madeira…porém, a imaginação também chegava à feitura de “bandas de música” onde os instrumentos eram os “nunus” feitos de cana (Arundo donax sp.) que também servia para fazer “canoas transportáveis”, e, como o automóvel sempre fascinou, era substituído não só pelos “carros de lemos” (de esferas) ou pelas “carracas” que, neste caso, eram construídas por duas rodas e um eixo que as ligava, sobre o qual se prendia uma vara de 1,5 m que se encostava ao ombro, a meio inseria-se um volante… a “carraca” era então o carro de corridas… não era, assim, um tipo de navio utilizado no transporte de mercadorias vulgarizado sobretudo no Mediterrâneo, também utilizado pelos portuguesas na carreira da Índia…
ALMA AÇÓRICA (21) Sobreviver no meio do mar durantes tantos séculos gerou sentimentos de ilha “mãe e madrasta”…Imagino as dificuldades nas doenças, em tempos mais recuados, onde só as plantas foram remédios, como hoje se sabe pela literatura conhecida… a tradição trouxe-nos coisas curiosas como usar teias de aranha (“paranhos”) para cobrir pequenas feridas que deixam de sangrar…a vitamina K (koagulation) (fator coagulante) presente na teia de aranha explica o sucesso…neste caso não serve o adágio “não limpes a teia, mata a aranha”…
ALMA AÇÓRICA (22) Ouvi de um ilustre rabopeixense já falecido que conheceu um documento não publicado que explicaria as características muito próprias da comunidade piscatória. Nem constituia naturalmente uma abordagem estigmatizante nem uma visão pretenciosa…todavia, segundo esse documento, incursões de piratas argelinos, frequentes nos Açores, teriam tido rumo diferente em Rabo de Peixe, pois ao fundearem junto à costa e constituindo uma ameaça para os naturais, seriam algumas vezes aprisionados e depois seguia-se a integração na comunidade piscatória…sustentando esta abordagem estariam os factos da tez escura dos pescadores, da toponímia (Cova da Moura, Canada da Meca), da postura no uso do chaile negro pelas mulheres e até do folclore com o uso de castanholas…não conheço abordagem científica ao assunto, porém, esse meu amigo de rabo de peixe contava isto com o sentido de divulgar o documento inédito a que teve acesso…
ALMA AÇÓRICA (23) Para quem não conhece a nossa descontinuidade territorial e as deseconomias que ela gera, basta lembrar que de Santa Maria ao Corvo são cerca de 600 km, ou seja, metade da largura da Alemanha e mais do que o comprimento de Portugal Continental…Muitos(as) açorianos (as) até se calhar já tinham viajado para as Américas ou ido ao médico às maiores ilhas. Desde 2008 o programa “60+” que decorre entre Setembro e Maio, possibilita viagens a 25 euros que incluem passagem aérea, alojamento, transferes, animação cultural e visitas da museus e locais de interesse turístico. Este programa combate a sazonalidade, oferecendo oportunidade aos mais idosos de conhecer quase todas as ilhas do Arquipélago. A semana passada, estando na Horta tive oportunidade de perceber a importância deste programa, apercebendo-me da satisfação de dois grupos de idosos (Flores e S. Jorge), que estavam no Hotel em que pernoitei…Registei curioso diálogo: “ainda bem que não me faltou aldância (misto de audácia e iniciativa) para vir até aqui”…”Não te esqueças que logo é dia de amigos, aperalta-te e não venhas vestido por alma (com roupa fora da medida)”…
ALMA AÇÓRICA (24) Há alguns anos a RTP/Açores produziu um programa “Pedras Brancas” que caracterizou a ligação e a luta do Homem à Terra, através de uma personagem, o sr Juventino, lavrador da Graciosa…Lavrando a terra e aguentando o arado via-se o árduo trabalho desse tempo…o cidadão anónimo Juventino, hoje acamado, legou como muitos lavradores essa força e sabedoria, que até se via no “mandar dos bois”, com a voz firme mas dolente da persistência…curiosas frases em algumas ilhas de quem com a aguilhada vai tangindo os bois que neste caso têm nome…”bás trás Amado…ouu Chapado ingeira para essa beirada” (devagar Amado, encosta à berma Chapado)…não temos transumância, temos muda de gado, não temos cabos temos pontas, não falamos em planaltos falamos em achadas, outeiros e chãs…somos terra de biscoitos, mistérios e queimadas…
(cont.)
Imagem de http://tesourosqueroubei.files.wordpress.com/2008/07/berlindes1.jpg