Sim, mas com que voz… posso eu vir teclar o quê senão clichés? Se o Jornal de Letras aceitasse textos não-inéditos, de bom grado substituiria estas linhas pelas de uma açoriana do Pico, Margarida Silva, há décadas residente na Califórnia, que na morte da fadista a homenageou com uma crónica urdia apenas com títulos de fados interpretados por ela (“Uma casa portuguesa” ficou ao “Abandono” e já não “Cheira a Lisboa”. Já não “Há festa na Mouraria” e a “Madrugada de Alfama” perdeu a cor da “Primavera” […] “Trago fados nos sentidos”, na boca “Amêndoa amarga”, “Ai esta pena de mim” dos “Martírios” que sofri. […] “Lisboa, não sejas francesa” e canta somente o “Fado português”). Mas prometi cumprir e é a isso que venho.
Como era de regra para os jovens da minha geração, desdenhei o fado por representar o Portugal dos três F’s (incoerentemente, continuei sportinguista e a aplaudir o glorioso Benfica nas jornadas europeias), até começar a aprendê-lo – e a saboreá-lo – na diáspora, no Primavera, um restaurante português de Fall River, Massachusetts.
Não escondo o gozo do meu partilhar em fotocópia, vezes sem conta, aquela deliciosa crónica “Casas de sofrer” do esquecido José Gomes Ferreira. Quem se lembra? Não fora a dita regra dos inéditos e seria outro clássico a merecer ressurreição, em vez das minhas monótonas elucubrações:
“Na semana passada, certo inglês, de passagem por Lisboa, quase me implorou, farto do Idêntico em toda a parte:- Mostre-me qualquer coisa que não exista noutro país. Há? Meditei meio segundo e respondi, telegráfico:- Há. «Cabarets». […] «Cabarets» estranhos, ao contrário, de pernas para o ar, sem «jazz» nem pretos de dentes brancos a soprarem gargalhadas nos saxofones. […] Autênticas Casas de Sofrer – onde se servem indigestões de mariscos e bebidas tristíssimas – construídas de propósito para pessoas com fumos de luto nas mangas, que pretendem chorar em público sem medo do ridículo. «Cabarets» – válvulas-de-escape, em suma…Venha comigo e verá.[…] No estrado alinhavam-se duas cadeiras à espera do viola e do guitarrista que entraram pouco depois em ritmo de enterro. O cantor também não tardou a surgir no catafalco, mancha negra dos cabelos até aos sapatos, solenidade de telegrama de pêsames, lívido, suado, sinceramente infeliz, cara de serenata à meia-noite a noivas morta… Houve um sussurro espectral. Os ouvintes ajeitaram-se o melhor possível nos assentos para sofrerem com comodidade.” (O Irreal Quotidiano, José Gomes Ferreira)
Ça va sans dire, o lisboeta tinha levado o estrangeiro a uma casa de fados onde os presentes pagavam para… sofrer. Em ambiente taciturno, melancólico e fatalista, os locais davam largas ao sentimento e ao prazer masoquista de sentirem uma dor espiritual.
Longe de mim participar em tal auto-suplício.
Os anos da diáspora encarregaram-se de me afinar, pois a música tem segredos que a razão não entende. A emoção pesa no relacionamento português – e aí concedo razão a Teixeira de Pascoaes. Não vem desse ponto a minha discordância do poeta de Amarante. Esta limitou-se sempre ao ter ele, num salto nada somenos, atribuído à “melancolia do nosso verbo” um carácter ôntico. O afecto entra na medula dos ossos lusitanos (uma considerável parte, isto é; e em doses muito desiguais), que rejeita o discurso e a postura seca, analítica, distante, fria. Basta atentar no que para aí se repete sobre o grande António Sérgio, cujos ensaios escritos com bisturí não aquecem a alma nacional.
Dois desconhecidos portugueses, sem importar a distância a que se encontram no globo, ao segundo email já terminam a conversa com “Um abraço”. Se forem homens porque, se a troca é com alguém do outro o género, é logo beijinhos. Não conheço nenhuma outra cultura tão pegajosa de afecto (se me lembrarem os brasileiros, direi que, nesse domínio, são mero apêndice – todavia de Sérgio Buarque de Holanda e da cordialidade falarei noutro lugar). Lembra-me a Nini Andrade Silva, criativa decoradora madeirense, contando de uma sua funcionária japonesa que detestava o toque corporal e não suportava os beijos dos meus compatriotas. Quando ela lhe lembrou que na França eram três, a japonesa respondeu defensiva: E onde é o terceiro?
E no entanto os japoneses ouviam a Amália e, sem entenderem patavina da letra, comoviam-se. Quando isso acontecia no Olympia, de Paris, ainda havia quem jurasse poder explicar o entusiasmo da sala pelo facto de ela estar pejada de portugas. Mas… no Japão? Impossível haver tantos capazes de abarrotarem um auditório. E o Camané revelou-me idêntica experiência na China. Aliás, aqui nos States fui eu mesmo testemunha do fenómeno. O Eric Wimmers, que não sabe uma palavra de português, no Zeiterion Theater, em New Bedford, chorava de comoção a meu lado ao ouvi-lo. Nem procurou disfarçar. No final do espectáculo, confessou-me possuir uma colecção de fados em CD. Volta e meia fecha-se numa sala a ouvir e… a lacrimejar.
Não, o Eric não é anormal. Marido de uma colega professora de Francês na Brown, a Inge Wimmers, hoje aposentada, especialista de renome em Proust, o Eric trabalhou longos anos na elaboração de testes de Psicologia em Princeton. Discorre doutamente sobre múltiplos tópicos, desde Shakespeare ao futebol.
A música não necessita de recorrer a traduções do Google. Os acordes de “Zorba”, de Mikis Theodorakis, ouvidos por mim em jovem, ainda quase me põem os cabelos em pé. E, na minha época de detestar fado, a melodia, o ritmo, a ágil graciosidade musical de “A casa da Mariquinhas” na voz da Amália varou-me. (Mas aquilo era fado?)
Não me deixem divagar.
Portanto, quando quiserem pregar que o fado é, como a saudade, um exclusivo português, deitem fora a tentação. As emoções são universais, embora algumas sejam mais comuns numa cultura do que noutras. Contudo, não chego perto da lógica de Millôr Fernandes: Bandido habita todas as partes do mundo… Bem, quase todas no Brasil. Quer dizer: de modo nenhum mantemos o exclusivo nacional. No entanto, tradicionalmente especializámo-nos na expressão elaborada dessa vertente, e uma voz sobrenatural como a de Amália (e outras do seu tempo, bem como da geração actual de fadistas), ajudam a torná-la atraente fora da nossa língua por ser humana, demasiado humana. E é essa a verdadeira dimensão do património mundial que o fado hoje ostenta. Daí que Portugal esteja a ele associado, como em tempos a Eusébio e agora a Ronaldo. Não se reduz a estes, claro. Todavia, cá no longe, a identificação é imediata. E a emoção. É isso a saudade ou, pelo menos, é o que em parte ela é. Quando na diáspora os portugueses são apanhados pelos acordes da guitarra, o salto é foguete. E, no entanto, cada um de nós é mais, muito mais do que a saudade, o fado, ou a Amália (ou o António dos Santos – aquele “Gaivotas em terra” ainda hoje me tem cativo). Todavia identifica-se imediatamente, embora só de vez em quando, porque a vida é bem mais larga.
Ao vivo, ouvi a diva Amália três vezes em espectáculos, sempre deste lado do Rio Atlântico. Numa delas, pedi-lhe uma entrevista para um programa que há quarenta anos mantenho no Portuguese Channel – TV, de New Bedford, Massachusetts. Foi a minha única gravação fora do estúdio. Fui ter com a convidada ao seu quarto de hotel em Newport, Rhode Island. Quem era eu para fazê-la ir à estação?
Na conversa, só queria soltar-lhe a fala para ouvi-la discorrer sobre o que lhe aprouvesse. Contou-me algo para mim desconhecido, que já estampei em escrito, mas autoplagio-me sem pedir autorização. No início da sua carreira, quiseram internacionalizá-la. Trouxeram-na para Nova Iorque e submeteram-na a um intenso regime de viagens e entrevistas, país fora, para promoção dos seus discos. Inicialmente, Amália ainda foi na onda, embalada pelo entusiasmo. Cedo, porém, começou a fartar-se. Quando o saco encheu, estacou: Deu-me saudades das sardinhas de Lisboa e fui-me embora para Portugal!
Onésimo Teotónio Almeida