Amanhã será outro dia
Naquela noite, o frio húmido e cortante de Agosto enregelava os ossos e percorria a alma. Já há muito que a noite abraçara Montevideu com uma fria negrura. É quando a cidade se prepara para repousar que o trabalho dos “hurgadores” se torna mais intenso
Os cascos do cavalo ecoam no asfalto, acompanhando a melodia dolente e constante da velha carroça. Os caixotes do lixo abarrotam. Ele pára a carroça velha e degradada junto ao passeio.
Durante algum tempo havia conseguido emprego na construção civil. No entanto, a crise económica atirou-o para o desemprego. Então, ao final de um dia na demanda incessante dum trabalho, acabava infalivelmente por ir «hurgar», ou seja, remexer os caixotes do lixo da cidade para seleccionar cartão e vidro para vender a alguma fábrica. Alguns dos seus vizinhos haviam conseguido vistos para ingressar nas “terras prometidas”, destinos de emigração, onde ecoava ainda a promessa de uma vida próspera. Mas ele não conhecia ninguém no estrangeiro que lhe pudesse facilitar um emprego e, claro, para acabar mendigando em qualquer rua da turbulenta Nova York, era melhor continuar na sua terra. O pior eram os filhos… Depois da escola, os mais novos vendiam isqueiros e caramelos nos autocarros, enquanto, o mais velho, com alma de poeta, vendia os seus versos escritos em folhas amareladas a alguns passageiros mais generosos e sensíveis.
Para a maioria das famílias que tentava obter assim o magro sustento, a miséria acabava por se tornar num ciclo vicioso. Não tendo quaisquer recursos, não tinham acesso à instrução, o que diminuía ainda mais as possibilidades de mudança de vida e de obtenção de um emprego.Por isso, não queria de modo nenhum que os filhos abandonassem a escola e fossem arrastados para aquele desespero.
Encontrou um saco de garrafas de vidro (talvez oriundas de alguma festa); também uma série de embalagens de cartão que desmanchou e empilhou na carroça, um brinquedo velho, dois pacotes de arroz. Fizera bem em ter ido para aquele bairro: Pocitos era habitado pela classe média e média-alta, por isso, sempre havia possibilidades de encontrar mais alguma coisa. Isto, ao contrário do que sucedia no Centro, ou em outros bairros, onde a crise se reflectia até no lixo.
Fez uma pausa para abrir a velha garrafa térmica e o sabor quente e amargo do mate deu-lhe novo alento. Sentia vontade de sonhar para enganar o frio: pintava com as paletas das cores da imaginação ilhas paradisíacas de climas amenos, para descobrir, onde pairava o cheiro azul da fraternidade e da maresia.
A Rambla encontrava-se deserta. Uma densa névoa envolvia tudo, até a esperança. Apenas os cascos no ritmo de sempre. Mesmo que não conseguisse vender o cartão e o vidro como esperava, ainda tinha o arroz para enganar a fome, o brinquedo para levar alegria aos filhos e havia sempre a esperança de melhores noites e de maiores “tesouros”, pois afinal: «Amanhã será outro dia».
In Contos do Rio da Prata (inédito)
Dora Nunes Gago é professora de Literatura na Universidade de Macau (China), doutorada em Línguas e Literaturas Românicas Comparadas. Foi leitora do Instituto Camões em Montevideu (Uruguai), professora do ensino secundário e investigadora de pós-doutoramento da FCT na Universidade de Aveiro.Publicou: Planície de Memória (poesia, 1997); Sete Histórias de Gatos (em co-autoria com Arlinda Mártires), 1ªed. 2004, 2ª ed. 2005; A Sul da escrita (Prémio Nacional de Conto Manuel da Fonseca, 2007); Imagens do estrangeiro no Diário de Miguel Torga, Fundação Calouste Gulbenkian/FCT, 2008. Além disso, tem poemas, contos, artigos e ensaios em diversos jornais, revistas e antologias.
Arte: La cuisine des anges por Bartolomé Esteban Murillo