andanças de pedra e cal,
de Álamo Oliveira:
A exclamação do silêncio
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Vamberto Freitas
Não haverá nada mais satisfatório do que ler um poeta na sua fase de maturidade sem idade, na sua capacidade agora total de observar os mundos à sua volta e saber dizê-los, quer estejam literalmente à nossa porta ou nas terras distantes. Por toda a obra de Álamo Oliveira perpassa um fio de continuidade temática e estética, sem que o autor perca nunca a capacidade de nos surpreender não só com a fluência de linguagens dobradas a significados fluidos conforme o “objecto” olhado, mas ainda por via de novas ou “(re)encontradas geografias nos seus percursos de viajante desprogramado e aberto a todas originalidades que se lhe deparam, ou ainda conforme os rituais quotidianos ou comemorativos da nossa e de outras gentes. Se a Natureza é uma realidade inescapável para a maioria dos escritores açorianos, dada a sua instabilidade e constantes manifestações de certos humores e cor, dada a nossa obsessão com o cerco do mar e as suas antigas ameaças de nos fechar do mundo (hoje, só memória, claro está), a poesia de Álamo Oliveira nunca acontece sem a presença do elemento humano centrado viva mas solitariamente, ou em estado apático e incerto no seu olhar fixado no longe e no inefável para além da junção do céu e mar, tentando adivinhar o que poderia ter sido um outro destino. Quase toda a poesia açoriana parece um choro sem lágrimas, nunca acusatório, das saudades do futuro que nunca (nos) chega, as saudades das terras distantes para as quais inventamos as nossas próprias fantasias, e de onde depois lamentamos até à morte a nossa partida do torrão natal. É o perpétuo ciclo existencial, a condenação dos náufragos e a libertação dos ilhéus navegantes.
Andanças de pedra e cal, recentemente lançado em Angra do Heroísmo, é quase um diário poético que resume muito de toda a poesia de Álamo Oliveira. Não será por mera coincidência que abre e fecha com uma revisitação ao seu imaginário ilhéu (particularmente situado na Ilha Terceira, mas não só), o singular detalhe das coisas e gente incutindo a todos e tudo uma espécie voz interior, um diálogo a sós chegando baixinho ao leitor com a força e a razão do que é dito serenamente: vista de cima é a exclamação/do silêncio, escreve Álamo num verso de “ilha de s. jorge”. Até a escolha de minúsculas mesmo nos títulos de cada poema e no próprio título parece querer reforçar a ideia de que a “caminhada” interessa mais do que o cenário completo que encontraremos no fim, o estarmos vivos e atentos ante uma humanidade que nos rodeia, a redenção maior tanto do poeta como dos seus eventuais leitores. Nessas duas sequências das ilhas, falam-nos a história, as ruas, as pedras, as igrejas e os palácios, toda uma humanidade em silêncio e em passo lento, presa do destino, a fuga para fora o único sonho que sempre lhe restou: a baía mostra um corte de navalha/de betão com cicatriz emersa/numa amplidão truncada para sempre, reclama o poeta em “sprital da misericórdia”.
Entre essas duas sequências açorianas de andanças de pedra e cal–como que na sempre esperada partida e regresso–temos as outras cidades de sonhos e desventuras, umas nas nossas “pátrias” sentimentais nas Américas, outras, bom, a leste e no “estrangeiro”. Também não será de surpreender aqui que o correlativo objectivo nalgumas cidades europeias são a sua beleza e frieza, o leitor acompanhando o poeta que lá chega (real e simbolicamente, creio) no Outono: o frio tem os dedos cinzentos (“genéve”); o silêncio retorcido como/cão doente tem o peso/de todos os remorsos – “truthof (natzwiller – schirmeck)”. São quatro poemas “europeus” de um admirável vigor metafórico e precisão formalista, mas mal avistamos neles a humanidade, vemos coisas e dolorosos factos históricos, um acto puramente intelectual, com a emoção contida numa história com a qual pouco teremos a ver, mas sem que da mesma imoralidade mortífera ninguém escapou ou poderá escapar. É certo que cada um de nós parte das suas circunstâncias para qualquer leitura deste ou doutros textos, a subjectividade o elemento fundamental e enriquecedor da própria obra em foco, a multiplicidade de interpretações sendo sempre a razão primeira da literatura. Só que a voz do próprio autor aí está, quer o receptor a saiba descodificar ou não, “acertando” ou “errando” (misreading) na sua leitura.
Tal como no repartido espaço açoriano de andanças de pedra e cal, é nas cidades a oeste e a sul da nossa antiga e/imigração e labor histórico que Álamo Oliveira deixa correr livremente razão e coração. Certo, revisita aí o nosso passado e presente por um visor que capta os mais inesperados pormenores (será isso também o que distingue um grande poeta e escritor), leva-o necessariamente ao que os teóricos pós-modernistas chamam de essencial “reavaliação” de todos e tudo num outro jogo de espelhos, reposicionamento social e até político, o outro agora falando para os centros que são ou já foram dominantes, os que nos “definiam” por palavras e modos nem sempre simpáticos, quando não abertamente racistas, a mentira fantasiosa que nos cortava a alma e negava a nossa dignidade no Novo Mundo. Nem sequer alguns intelectuais brasileiros durante quase todo o século XX escaparam a essa vertigem sócio-histórica, que mais não fez senão adiar o confronto com a sua própria imagem e incapacidade de transformar o que dizem ter sido uma má herança lusíada. Vejam as cidades que os nossos irmãos do outro lado Atlântico mostram ao mundo de hoje para captar simpatias internas e externas e assim finalmente valorizar ainda mais o país-gigante recentemente levantado do chão, vede a arquitectura da beleza, da calçada portuguesa à torre de qualquer igreja do Rio e Bahia a Ouro Preto, e ainda a língua em que se fundamenta e desenvolve uma das mais vivas literaturas do mundo.
São onze os poemas destas outras viagens de Álamo Oliveira pelos seus mundos de eleição, ou ocasião. Um deles tem como referencial a famoso Yosemite National Park no centro da Califórnia (“o que diz o índio em yosemite”), e outro de título “mazatlan”, a sensual cidade mexicana de veraneio na costa do Pacífico. Eis aqui também outra desconstrução em andanças de pedra e cal da mítica do Bom Selvagem e das Fantasias Crioulas, que desde há muito vêem e choram o seu caído paraíso, o paraíso dos sonhos de europeus e que um dia nos fez navegar. Os outros situam-se nalgumas das cidades da nossa imigração californiana–Tulare, Gustine, Berkeley, São Francisco; depois o Rio de Janeiro, São Paulo, e alusões claras a Porto Alegre, Ouro Preto, e a Tiradentes. Todos estes poemas são declarações de amor, velha história e gente reencontrada, e a inevitável “acusação” (do poeta) das manchas que o tempo e a vida lhes impuseram, o registo da condição humana no seu ciclo universal. É nestes poemas que a emoção e sentimento de pertença sobressaem novamente, as nossas pátrias tanto são reais como imaginárias, os nossos afectos nascidos tanto de vivências quotidianas como de mãos e corações estendidos na distância aos que connosco partilham identidades e origens ancestrais. Toda a nova literatura mundial chama a si estas referências múltiplas, a geografia física tendo perdido toda a sua importância e barreiras de outrora.
Na Califórnia o poeta experimenta a saudade que os nossos lá sentem pelos tempos perdidos a meio Atlântico, dando origem aos rituais comunitários agora metamorfoseados por culturas mistas, nem sempre de significados precisos. A força das raízes, sempre. andanças de pedra e cal sai das comunidades luso-americanas para ver e rever com outros olhos e entendimento uma outra América, São Francisco
e a vizinha cidade universitária de Berkeley despertando a vontade de se viver a liberdade, com ou sem flores na cabeça, os seus cidadãos como que dizendo à restante nação que se esta não gosta de cor e estética, o seu lugar não será ali. Nem o Poder mais enraizado ousa contestar esta audácia e criatividade; aprendeu a lição nos anos sessenta e nunca mais a esqueceu.
Os poemas brasileiros são “ditos” com as linguagens do espanto e naturalmente a da afectividade pura. À beleza natural estonteante e de biquíni do Rio de Janeiro, Álamo Oliveira faz lembrar a fome favelada; na grandeza assombrosa de São Paulo convivem a poesia e arte em toda a parte com a realidade do que ele chama a amazónia de betão, mulher grafitada dos pés à cabeça. No poema “fantasia sobre uma cidade do sul” volta a olhar uma história de dor, a chegada dos que procuravam terra e futuro (açorianos) e encontraram pobreza, solidão e desterro que resultaram, como sempre, das inescapáveis mentiras e má fé de governantes aqui desta margem atlântica, reerguendo-se depois, apesar de tudo, como povo para fundar não só cidades, mas toda uma civilização que hoje merece o maior e mais alto monumento em Porto Alegre; em “cidade das minas” passeia por Ouro Preto e pela cidade de Tiradentes, recorda de novo os heróis banidos e esquartejados, fazendo lembrar nitidamente, quase num diálogo consciente ou subconsciente, alguns dos melhores momentos de Cecília Meireles no Romanceiro da Inconfidência.
São os poemas “do sul” que mais poderão surpreender quem conhece a obra poética de Álamo Oliveira. Se na ficção de Já Não Gosto de Chocolates tinha dado provas de outras afinidades electivas–nomeadamente com as nossas comunidades no oeste americano–é em andanças de pedra e cal que expande todo um outro imaginário além-fronteiras, para ele as pátrias íntimas por razões de sangue, história e destino. Ouve-se constantemente por cá que temos–temos?–de “sair” das ilhas para darmos provas de qualquer e mal pensado “universalismo” na literatura. Trata-se, por certo, de um equívoco, para não dizer ignorância, de quem pouco lê os escritores açorianos e é incapaz de enxergar para além do esporádico mar de chumbo que nos rodeia e das nuvens cinzentas que frequentemente nos ameaçam afogar.
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Álamo Oliveira, andanças de pedra e cal, Angra do Heroísmo, BLU edições, 2010.
Crédito Imagens – Acervo Blog Comunidades.