AndarIlha
Viagens de um Hífen
Maria João Dodman, desculpe não me vergar em vénias até o nariz tocar no chão, para a chamar de Professora Doutora (ou será de Doutora Professora?), é uma açoriana nascida em São Miguel, crescida no Faial e emigrante no Canadá onde é Professora, em Toronto, na York University.
Dela é o livro que acabo de ler – e, consoladoramente lê-se de um fôlego só – com o título AndarIlha – Viagens de um hífen. É uma edição Letras LAVAdas, de Junho do ano passado, mas que só agora li. E em boa hora o fiz, sugestionado por um texto de Vamberto Freitas, publicado originalmente no Açoriano Oriental, mas que vi no blogue Comunidades, da RTP, coordenado por Lélia Nunes e Irne Blayer.
E digo com Vamberto Freitas: AndarIlha – Viagens De Um Hífen é este constante acto dialógico entre textos e realidade, entre o passado e o presente, entre as várias gerações que fazem e vivem a açorianidade ou a portugalidade em toda a parte, deixando de ser um outro para assumirem, sem complexos nem conflitos sentimentais, a sua condição, neste caso de luso-canadianos, e, por inferência, luso-com o restante espaço a ser preenchido conforme o seu outro país.
Confesso que estão são das mais belas crónicas que li, desde há muito. Até pensei que este estilo de crónica já não existisse. Felizmente que me enganei e vi aqui diálogos íntimos com o passado, não num saudosismo poético, mas na frontalidade de quem semeia alma em cada palavra, a dar razão ao princípio de que a ausência é o cadinho onde se purifica o sentimento.
Aqui, o sentimento mistura-se com o saber e o sabor da crónica que tanto nos leva ao Menino Jasus, ao velho da saca e aos mitos de acalmar a ira de Nosso Senhor, com nos conduz aos magníficos textos sobre Dias de Melo: Saudades dele, Pena de Nós.
Sendo Dias de Melo, a par com Daniel de Sá, um dos meus escritores-ídolo, esta crónica de Maria João Dodman sobre o autor de Pedras Negras é simplesmente comovente. A forma como narra o encontro que teve com o livro, em Toronto, na Biblioteca Robarts, numa das prateleiras do décimo segundo piso daquela imensidão literária leva-nos a acordar, com ela, o Francisco Marroco, a Maria, O João Peixe-Rei e todo o drama que faz do livro de Dias de Melo um dos mais belos da Literatura nos Açores.
De facto, nem sempre a saudade chora: Atrevo-me a perguntar-lhes sobre a saudade (era na Casa dos Açores e notava-se a ausência de javens)… Saudades de um país esfomeado com mania de grandeza? Que nos comeu filhos, condenados à morte nas guerras coloniais? Que nos consumiu filhas, mulheres vitimizadas por um sistema que lhes negou igualdade, afirmação, existência? Saudades de não saber como alimentar os filhos?
Poderia parecer duro, poderia parecer acusatório, mas logo a seguir num contraponto de comovente humanismo vem o apelo de passemos a celebrar a nossa modernidade, a nossa hibridez em que a saudade se transforma de acordo com as circunstâncias. Nem sempre a saudade chora. Por vezes pondera, aprecia, celebra.
AndarIlha – Viagens de um Hífen não se mede pelas suas escassas setenta e poucas páginas e dúzia e meia de crónicas. O livro tem a dimensão da distância mitigada nessa globalização a que nos conduz a sua leitura.
Numa das crónicas, Ninguém fala com ninguém – Livro de caras e outras parvoíces da nossa modernidade, senti-me plenamente identificado, a apetecer-me colocar ali a minha humilde assinatura:
O morto jaz na casa funerária. A sala, à excepção do morto, da esposa e do agente funerário, encontra-se vazia. A esposa chorosa lamenta: “não percebo, ele tinha cinco mil amigos no facebook”… E a Professora (Maria João Dodman) deixa a lição: É incrível que nas ruas, nos elevadores, nas salas de espera e em tantos outros lugares públicos, ninguém tenha nada a dizer, mas na internet todos têm algo a dizer. Nesse saco infinito que é a internet cabe tudo: os cultos, os não cultos e o piorio, os que se consideram cultos…
E com a mesma frontalidade, lá fica a pergunta do século: “Mas tu não tens Facebook?”. Um capítulo do livro verdadeiramente fascinante.
Igualmente cativante aquele soberbo texto Marquinha: Uma avó (in)Vulgar. Retrato realista, duro, mas ao mesmo tempo carinhoso de uma figura acabadinha, curvadinha, de mãos encardidas, desdentada, de cabelos brancos que, às vezes, ainda tentavam espreitar dos lados do lenço preto que os subjugava, símbolo de uma opressão que ela nunca questionou…
E o reverso: Sorrio ao pensar que esta gente não tem a mínima ideia de que eu sou a menina das ilhas de bruma, que sou neta daquela avó invulgar que foi dona das memórias da nossa gente e de quem herdei a perseverança necessária para finalmente dar aquela volta triunfante ao meu xaile.
Para quem escreve sobre um livro, essencialmente depois de ter gostado, o grande perigo ou tentação é dizer tanto dele que atenue a curiosidade de quem o pretenda ler. No caso deste, tenho a certeza de que quanto mais possa dizer, muito mais fica por contar, essencialmente porque há neste AndarIlha uma harmonia de pensamento e uma beleza de escrita que fazem com que das coisas mais simples se possa tirar a tal lição que nele desabrocha: quanto mais perto e mais próximo, mais universal.
E que me perdoe o meu Amigo Vamberto Freitas, mas as melhores palavras que encontro para terminar são dele e aqui ficam:
Certas linguagens aqui, inclusive nos dois textos escritos em inglês, poderão ser interpretadas como uma catarse ou confronto metafórico com esse passado, como que num gesto de recuperação, e nunca rejeição, e em que a modernidade o reintegra nesse equilíbrio a meio da ponte, o nosso novo ser em viagem perpétua entre dois ou mais mundos, livres de fronteiras mais imaginárias do que reais. Trata-se, uma vez mais, de um conjunto de textos literários admiráveis que, lidos em sequência, constituem um vivo e ao mesmo tempo sereno diálogo com os seus leitores, não em busca de uma síntese cultural qualquer, mas sim clamando pela convivência inteligente e frutífera entre o cá e o lá. São páginas celebratórias de uma renovada ou nemesianamente replantada açorianidade noutras geografias e noutros viveiros.
Santos Narciso
Foto: York University
Nota: O artigo de autoria do jornalista José Manuel Santos Narciso,publicado originalmente no Atlântico Expresso em sua página Leituras Atlânticas. Aqui reproduzido com a devida autorização do Autor a quem agradecemos.