sobre o nevoeiro que cobre o rosto desenhei as
ruas da minha memória e morei as ilhas do oci-
¬dente. sobre a cor ácida do rosto incendiei mares
e chorei a lava que secou o tempo. sobre a pla-
¬centa do rosto queimei pátrias, destinos, pro-
¬fecias e ergui casas de lua cheia, campos de trigo
nos olhos e um eterno gosto a maresia.
[todo este nevoeiro]
todo este nevoeiro é um acender da acidez do rosto.
a mão não escoa. e carrego nos braços toda a amar-
¬gura desse tempo que esqueci, como se a memó-
¬ria fosse o meu maior destino, como se a dolên-
cia deste tempo me arrastasse e me recusasse a pri¬-
meira e a única felicidade.
[devolve-me todos os silêncios]
devolve-me todos os silêncios do rosto, a canção
ofegante do sono, o não acordar das manhãs.
devolve-me tudo. poderei falar-te da lava onde
repousaste e das tardes húmidas da pele nas
águas, os corpos crescendo no manto das ondas. de-
¬volve-me todos os silêncios, a pausa triste da
mão sobre a noite, a fugacidade dos olhos sobre o
campo. poderei falar-te da paz de uma ilha e dos
braços sobre a alegria das dunas, o crepúsculo avan-
çando sobre a muralha.
Ângela Almeida,
Sobre o rosto,
Ponta Delgada, Jornal de Cultura, 2ª ed. 1994.
Ângela Maria Duarte de Almeida (1959) investigadora, poeta, natural da cidade da Horta, ilha do Faial, reside na de Ponta Delgada, ilha de S. Miguel.