MEMORANDUM
João-Luís de Medeiros
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ANTERO DE QUENTAL
Poeta-peregrino com passaporte da liberdade (*)
Os discípulos anterianos costumam cognominar o mês de Setembro como época ideal para vindimar ideias. O convite à vindima dispensa a recitação de discursos fúnebres alusivos ao derradeiro episódio da via-sacra existencial do grande filósofo-poeta Antero de Quental (11 de Setembro, 1891). Aliás, não faz mal acreditar que os profetas espirituais não morrem – simplesmente, emigram para outras órbitas siderais, na esperança de que os seus poemas sirvam de referência cósmica na jornada-missionária da “comunhão ideal do eterno Bem”.
Em Setembro de 1991(época em que ainda residia e trabalhava em Fall River, Massachusetts) tivemos o cuidado de assinalar, publicamente, o primeiro centenário da morte de Antero de Quental. Para o efeito, conseguimos congregar um pequeno grupo de imigrantes que foi então contemplado com a cooperação voluntária de dirigentes interessados no sucesso da experiência: Ateneu Luso-Americano, Associacão Cultural Lusitânia, Sociedade Cultural Açoriana, SER-Jobs for Progress, o antigo Centro Cultural Lusófono da UMass/Dartmouth, e ainda alguns órgãos da imprensa e rádio locais…
Apesar do objectivo em vista não prometer visibilidade garantida ao habitual elitismo da confraria académica, a sessão pública foi visitada por algumas das mais gradas figuras das Letras & Artes da área. De resto, a nossa saudável teimosia não hesitou seguir em frente, fingindo-se distraída da habitual mornaça da indiferença do pseudo-monarquismo étnico. Porventura ‘tocada’ pela evidente raridade do evento, a moldura humana que compareceu ao supracitado evento foi deveras uma louvável surpresa…
E assim foi: durante a sessão, falámos de Antero (sobretudo da sua honorabilidade cívica e humana); houve ainda tempo para a leitura dos conhecidos sonetos eivados de religiosidade espiritual, designadamente, “À Virgem Santíssima” e “Na Mão de Deus”. No final do evento, ficámos com a sensação de que o ‘terreno étnico’ ficara cavado de fresco para organizar futuras sessões mais condizentes com o perfil do apostolado social anteriano (sem descurar outras figuras artísticas da diaspora lusófona)…
Sugerir uma breve reflexão colectiva alusiva à data da morte de Antero de Quental (ademais na pacatez cultural de Fall River) poderia à primeira vista gerar um sentimento estranho aos imigrantes pouco avisados da universalidade artístico-filosófica do bardo micaelense. Nessas circunstâncias, o nosso cuidado esteve baseado em conciliar o perfil dos mensageiros com a especificidade da mensagem.
Naquele fim de tarde de Setembro de 1891, Antero de Quental talvez nos quizesse lembrar que a morte “é metafisicamente necessária“. Se o ser humano fosse imortal, adorava-se! Mas hoje, caríssimas(os) não vamos mergulhar nessas escuridades filosóficas. No seio dos entusiasmos oficiais, há sempre os laivos de admirações prudentes – ou seja, a tensão do ideal nem sempre é contínua… … / …
Como nunca é demais recordar, Antero de Quental nasceu e morreu em Ponta Delgada (Abril 18, 1842 – Setembro 11, 1891). A sua vida foi uma peregrinação intelectual acidentada e repartida pelos ignotos continentes da Nova Ideia; trazia na sua ancestralidade sanguínea não só o ímpeto doutrinário do orador sacro Bartolomeu do Quental (sem ignorar o inquietismo liberal paterno, Fernando Quental, um dos bravos do Mindelo), mas também a interioridade e a pacatez religiosas de sua mãe, respeitável dama da burguesia micaelense.
Na ânsia de traduzir as perplexidades do percurso intelectual anteriano, não vejo maneira de me ausentar da encruzilhada das suas doridas interrogações. Recordo ter começado a ‘gaguejar’ os seus versos na primavera de 1957, felizmente alheio à pomposidade pequeno-burguesa do sapateado académico! Mais tarde, comecei a notar que a poesia anteriana desvendava dois mundos contraditórios: um da relatividade e da contigência; outro onde circulam notícias da virtude e do eterno. No primeiro, tudo é efêmero e nada tem em si a sua causa; no segundo, é a promessa da constância e da estabilidade. Eis algumas das suas sensatas sugestões: “a conveniência de sacrificar a satisfação do que é passageiro ao que não é”…
(…/…)
… numa das cartas a Oliveira Martins, datada de Junho de 1891( época em que o Poeta acabara de regressar a São Miguel, cerca de três meses antes do fatídico gesto que iria interromper a sua extraordinária existência), o “génio que era um santo” confidenciava ao seu amigo alguns sentimentos que não perderam actualidade: “… tenho estranhado, mais do que suponha, a mudança de clima: é verdade que esta quadra do ano é a pior aqui… e aos próprios da terra oiço queixarem-se da depressão fisiológica produzida por este ar de estufa (…/…) pelas conversas que tenho tido com vários dos meus visitantes vejo que o espírito separatista tem aqui diminuído, o que explico pelo facto da prosperidade actual da ilha. De resto, ninguém aqui faz ideia da gravidade da crise porque a nação está passando…”.
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(*) excertos de textos incluídos no livro ‘Canteiro da Memória’ – 2010).
(**) João-Luís de Medeiros – Poeta & Cronista-convidado da rádio e imprensa da Diaspora Lusófona. Sem interromper as suas funções de Contabilista em full time, conseguiu concluir B.A. ‘cum laude’ em “Humanities & Social Sciences“; é também diplomado com o grau de Mestrado em Ciências de Recursos Humanos (Chapman University, Orange, CA).