Ao ser lançado, Grande Sertão: Veredas causou espanto. Houve mesmo um escritor que reclamou com José Olympio, o editor do livro: "Quando é que você vai mandar traduzir o Grande Sertão para o português? Assim como está, não consigo ler. Isto não é português."
O livro de Rosa foi recebido com respeito. Quanto a mim, fui ao extremo oposto e publiquei em minha coluna Porta de Livraria do O Globo estas palavras: "O romance de Guimarães Rosa, fincado de agora em diante em nossa literatura, vem alargar os planos em que os escritos de um povo se fundam." Analisei, ainda, a bela utilização, que Rosa faz no livro, de um português básico, antigo, próximo do primeiro documento de nossa história: a carta de Pero Vaz de Caminha, além do uso de um português novo, vivo. Chamei também a atenção para a unidade da narrativa, ou melhor, para a sua unicidade. A fórmula rítmica do romance tradicional, dividida em capítulos, deixou de existir em Grande Sertão:Veredas, para dar lugar a um relato ininterrupto, coeso, fechado sobre si mesmo. E o entrosamento entre as diversas fases do romance, a passagem de um acontecimento para outro, tudo feito com espantosa riqueza, tanto na linguagem como na técnica narrativa. O simples fato de escrever uma história corrida, sem capítulos, não bastaria para fazer do romance uma obra-prima, não fosse na cadência límpida em que decorrem os acontecimentos, fazendo lembrar os rios da região, tão importantes na demarcação do trabalho de Guimarães Rosa como o são no traçar limites naturais nas terras que banham.
Acima de tudo, Rosa amava a palavra. Quando me achava na África, Rosa me escreveu pedindo que lhe mandasse o texto da Ave-Maria em ioruba, o que fiz. Respondeu-me agradecendo e comentando: "Que beleza a palavra mimó". É que, na oração em iorubá, existe este trecho: "Santa Maria mimó". Mimó em iorubá também quer dizer "Santa", de modo que eles usam a palavra em latim (e português) e a repetem em iorubá.
Na biografia rosiana, sai agora um livro precioso. É da filha de Rosa, Vilma Guimarães Rosa, chamado Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai, livro que mostra o escritor de perto, na vida normal do dia-a-dia, em páginas que contribuem para mostrar Rosa sob um aspecto familiar e diferente da imagem apenas literária. Vilma tem igualmente uma obra de escritora e participou o tempo todo da vida intelectual do país.
Seu livro de agora sai em 3ª edição, comemorativa ao centenário de nascimento de Rosa. Fartamente ilustrado, tem uma "orelha" de Otto Lara Resende que, depois de analisar a obra de Rosa, diria: "Rosa de Minas. Rosa do mundo. Pela mão amorosa de Vilminha, aqui está Pai-João-Beleza, que no século se assinou perene, para todos os séculos, João Guimarães Rosa".
De grande importância no livro, são as transcrições, que Vilma faz, de trechos de cartas e de frases de Rosa que abrem um horizonte de imagens que o escritor sentia necessidade de colocar em palavras. Cordisburgo, a cidade mineira em que Rosa nasceu, aparece em várias páginas do livro, dando uma idéia precisa da origem de sua obra literária.
Vilma Guimarães Rosa começa seu livro com este depoimento:
"Escrever sobre João Guimarães Rosa, apresentando-o a vocês, leitores deste belo e importante dicionário, que revela e transmite a mensagem literária de meu pai, é para mim motivo de orgulho e um dever de devoção. "Contar é muito, muito dificultoso", disse Riobaldo, jagun¬ço dos Campos Gerais, mestre-narrador, ilustre personagem de Guimarães Rosa. Um abreviado perfil de meu pai torna-se quase dificultoso, pois é inspirado na memória do coração. A interferência da sau¬dade desafia a própria sensibilidade. Mas, afinal, saudadear é, para mim, trazer no espírito os entes queridos que se encontram fisicamente desaparecidos.Questionando sobre os mistérios que envolvem uma existên¬cia, procurarei sintetizar alguns episódios que definam a perso¬nalidade carismática e a profunda filosofia de vida do gênio ma¬ravilhosamente humano que foi meu pai. Pelo seu espírito a luz perpassa, iluminando a magia que acompanha a sua lembrança. Tendo percorrido numa dimensão espiritual os mundos que projetaria em cada uma de suas estórias, ele satisfez os desejos fundamentais de expressão da verdade e da beleza. O amanhecer de Joãozito – como era chamado pela família – aconteceu no dia 27 de junho de 1908, na pitoresca cidadezinha de Cordisburgo".
Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai é lançamento da Editora Nova Fronteira, capa de Leandro, produção editorial de Daniele Cajueiro e Ana Carla Sousa