Em jeito de homenagem a Mário Cabral
Mário Cabral, o escritor, o poeta, o filósofo, que deveria para cada açoriano dispensar apresentações, partiu prematuramente de entre nós e deixa inconsolados os que privavam com ele. Para além disso, ele era um pensador exímio, pintor, cronista, comentador televisivo, professor, humanista e católico convicto, mas que não foi devidamente valorizado nestes Açores.
Partiu na passada quinta-feira e o seu funeral foi no dia da festa de Santa Clara, de quem era muito devoto, não fora ele da OTF, ou seja da Ordem Terceira Franciscana e Ministro Regional dos Açores. Coincidências que nos fazem refletir.
Dizia-se de Mário Cabral que parecia ter saído da era Renascentista, tantos eram os seus interesses e talentos, não fora a sua faceta de artista contemporâneo e atual. A profundidade e seriedade do seu pensamento e da sua espiritualidade contrastava, aparentemente, com o ar arrojado e liberal do seu temperamento artístico.
Mário Cabral explicava estas duas facetas como partes integrantes da sua personalidade, como uma árvore com as raízes profundamente vincadas na terra, mas com os ramos espraiando-se em busca de mais horizonte.
A sua tese de Doutoramento foi um dos momentos mais brilhantes da sua carreira, precisamente na área da filosofia, que integrou perfeitamente estas duas facetas: a seriedade e profundidade caraterística do seu pensamento, e a rebeldia e a ousadia do seu espírito inquieto, que o levava sempre a trocar percursos seguros e certos, pelo risco e pela paixão de defender a sua própria visão do mundo, dando-lhe o título de “Via Sapientiae: da Filosofia à Santidade”. A 10 de maio de 2006, Mário Cabral concluiu o seu doutoramento com distinção, arrebatando a plateia de intelectuais de renome que ficaram maravilhados com o saber e a profundidade deste filósofo açoriano.
Foi uma tese à moda antiga e complicada, que antevia ser difícil de ser aceite pela cátedra, dado que em algumas secções, o estilo, de tão desusado, poderia ser tomado como provocatório. Ele assumiu todos os riscos, mas sabia o peso dos riscos que estava a assumir.
Num Colóquio Internacional sobre Agostinho da Silva e o Pensamento Luso-Brasileiro, Mário Cabral, foi convidado para uma palestra, tendo abordado “A Determinação da Realidade: da Realidade captada à Realidade que brota”. A par de insignes nomes da intelectualidade portuguesa, este açoriano foi assombroso na sua dissertação naquele encontro, realizado em 2004 na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
O grande pensador português Agostinho da Silva viria a moldar o pensamento de Mário Cabral sobre se é possível chegar à santidade sem a filosofia. Ao que respondeu que disciplina, melhor do que a filosofia, pode destrinçar os falsos saberes da Verdade, analisando, com aquela cientificidade exigida por Agostinho da Silva, a linguagem equívoca, o reducionismo das propostas, o perigo das consequências reais deste ou daquele princípio teórico?
Diria o filósofo açoriano que “não é preciso que o filósofo seja santo, embora custe a aceitar que a razão não se abra ao espírito, que a dianoia (ciência) não dê o salto para a noêsis (espiritualidade), que o cientista não dê lugar ao sábio. O sábio já vive um estado de sôphrosynê (Serenidade) muito próximo da contemplação mística. Teixeira de Pascoaes refere-se quase sempre a este santo estoico que se consola nas alturas rarefeitas do etéreo céu; mas termina por compreender que o mártir é o santo por excelência, na medida em que tudo sacrifica à lei inalienável da compaixão”.
Numa conversa sobre romarias e cultura, Mário Cabral disparou-me: A religião é um movimento que vem do Céu para a terra e, por isso, manifesta-se sempre culturalmente. Mas a religião não é cultura. A cultura é o modo como o ser humano capta a manifestação da Transcendência.
Pode haver cultura sem religião. A cultura é a subida humana da terra para o Céu. Cada vez mais, no Ocidente, a cultura não chega ao último degrau da escada espiritual, que é a religião.
Pegando numa imagem da escada: o homem sobe culturalmente até ao Céu… quando pode. A cultura é esta ascese do ser humano da consciência ao Espírito. A cultura laica nunca chega ao Sagrado e, muito menos, à Transcendência. A religião é uma descida, uma incarnação, um transe do alto para baixo.
Claro que as manifestações religiosas utilizam linguagens e roupagens culturais dum determinado tempo e espaço – mas há que sublinhar a vermelho, contra o relativismo, que a religião não é uma manifestação cultural! A religião espicaça e obriga a cultura a desenvolver-se, a língua a tentar explicar o que vem do alto. O contrário é relativismo e… heresia: antropocentrismo.
Apesar de doente continuou a escrever muitas das suas crónicas, e a sua presença quinzenal nas páginas do Jornal “Correio dos Açores” incitava o leitor à meditação e ao aprofundamento da relação com Deus. Quando lhe foi descoberta a fatal doença, encarou-a com uma serenidade indiscritível e preparou uma série de crónicas que me enviou para serem publicadas, enquanto durasse o tratamento. Recuperou a sua vitalidade e nunca perdeu a argúcia do seu pensamento e a sua profunda sabedoria.
Sentíamo-nos tão pequeninos perante a uma personalidade de altíssimo gabarito. Infelizmente, a semana passada não recebi a sua habitual crónica e tentei contatar-lhe sem sucesso. A fatídica notícia chegou entretanto: Os Açores acabam de perder uma insigne personalidade que não foi devidamente valorizada em vida e a Região fica mais pobre pela perda de uma grande figura da filosofia, das letras e das artes açorianas. Será que o Professor Doutor Mário Cabral não merecerá uma Insígnia Autonómica, já que muitos sem a grandeza do seu pensamento e da sua arte já foram agraciados pela Região?
António Pedro Costa
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António Pedro Costa, Ex-presidente da Câmara Municipal da Ribeira Grande, São Miguel, Açores, e ex-membro da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores.