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Este conteúdo fez parte do "Blogue Comunidades", que se encontra descontinuado. A publicação é da responsabilidade dos seus autores.
Imagem de Ao contrário de Nemésio
(mas não totalmente) por

Joel Neto
Comunidades 21 dez, 2013, 03:20

Ao contrário de Nemésio (mas não totalmente) por Joel Neto

Ao contrário de Nemésio
(mas não totalmente)

Joel Neto

“A miséria, sendo muito outra, era só coisa de espírito. Crescia no coração dos meus pais, como a hera dos muros ou o trevo nos pastos, e chamava-se avareza. O pão endurecia durante quinze dias e ganhava bolor – porque o forno gastava lenha! O leite que devia calcificar-nos os dentes e os ossos era para vender à fábrica: depois ficávamos a implorar uma fatia de pão de trigo com manteiga de vaca, uma lâmina de queijo com pão da loja à merenda, e nada: segundo a mãe, isso era comida de ricos.”
Completam-se vinte e cinco anos sobre a publicação original de “Gente Feliz Com Lágrimas”, e a Dom Quixote escolheu celebrar a efeméride com a vigésima-terceira edição portuguesa da obra, que se vem somar às traduções, aos prémios (incluindo o Grande Prémio Romance de Novela APE de 1989, batendo o favoritíssimo “Missa In Albis”, de Maria Velho da Costa) e às loas coleccionadas por João de Melo, ao longo dos anos, um pouco por toda a parte.
Alguns dos mais importantes louvores declararam-no herdeiro do chamado realismo mágico, à maneira de García Márquez ou Scorza e, antes destes, Uslar Pietri. Sê-lo-á, porventura, no modo como transporta para os Açores dos anos 1950/1960 uma parte da atmosfera fantástica – embora mais no domínio do estranho do que do maravilhoso – que povoou boa parte da melhor literatura sul-americana desse mesmo período.
Quanto ao resto, dificilmente haverá alguma coisa de mágico no arquipélago de João de Melo, a não ser eventualmente a paisagem e – essa, sim – a experiência da linguagem, pisando a cada instante os territórios da poesia. Falamos sobretudo de um marco colossal da literatura portuguesa do século XX – o século do povo e da fuga – e, seguramente, da mais importante referência da literatura açoriana desde (pelo menos) “Mau Tempo no Canal”.
Em causa está, agora, não já talvez esse princípio nemesiano de que, para o povo dos Açores, a geografia é tão importante como a história, mas muito mais a ideia universal e universalista de que cada homem é uma ilha, partilhada também notoriamente por Saramago. O que não deixa, em todo o caso, de constituir um discurso sobre a geografia e a sua relação com a história, aqui interiores e amalgamadas numa só impressão não totalmente definível.
Numa São Miguel escondida por detrás das montanhas, num lugarejo de onde não se vai a Ponta Delgada mais do que uma vez ao ano, três irmãos suportam uma infância de brutalidade e carência, às ordens de pais frequentemente desterrados num mundo só deles. Proporcionam-se-lhes, em diferentes momentos da adolescência, fugas distintas: a vida monástica à rapariga, o seminário ao mais novo e o exército ao mais velho. À sua maneira, cada um se encarregará de detonar também essa escapatória – e todas as três vidas acabarão por redundar em mosaicos particulares de sucessivas evasões.
Em pano de fundo estão, à vez, a impossibilidade de permanecer ali mais um instante que seja, entre homens brutais só esporadicamente capazes de um gesto de ternura, e a tentação do regresso, menos como evasão aos homens mansos só esporadicamente capazes de matar, tantas vezes íntimos das grandes cidades, do que à procura daquilo que ficou por dizer, da possibilidade não manifestada antes. A emigração, imposta ou não, é porém tragédia igual para um pescador levado para Massachusetts como para um bolseiro bem instalado em Princeton. Deixa as suas marcas indeléveis e inapagáveis – e intromete-se nas leis da termodinâmica, provando que condições diferentes podem, muitas vezes, originar resultados semelhantes.
A infância é irrepetível, no espaço como no tempo, e a circunstância virá a baralhar os dados à disposição de Nuno Miguel, Maria Amélia e Luís Miguel. Ecos de Freud insinuam-se quando Nuno, personagem principal, dá por si a mimetizar atitudes recorrentes do pai, o primeiro algoz da sua infância. Todo o mal está na família, como todo o bem também: ela leva-nos ao colo e é a bola de ferro presa ao nosso pé. O poder do progenitor permanece, por isso, inexpugnável, e lidar com esse poder uma missão para concretizar à primeira tentativa. Nuno Miguel falhou e acaba por transportá-la ao longo da vida toda, incompleta. Incompleto.
Um romance monumental – eis aquilo de que se trata. Do título à nota com que encerra, e mesmo se nem sempre é fácil encontrar-lhe a melodia. Ou precisamente por causa disso. Narrativa polifónica, feita de fragmentos e memórias descontínuas, a cada instante determinada a somar centros de consciência, “Gente Feliz Com Lágrimas” mantém as costuras à vista, e talvez seja essa a sua suprema virtude.
Escrita na primeira pessoa (embora, de certa maneira, o discurso de Marta sobre Nuno Miguel, o marido, constitua mais uma declinação para o ladrilho modernista), de modo a que, a dada altura, as personagens possam confundir-se umas com as outras, e o escritor com elas, combina imagens de profunda riqueza com metáforas menos concretizadas e frases de métrica escorreita com rimas aparentemente a despropósito, numa opção técnica que, mais do que emular o modo atabalhoado de pensar das pessoas verdadeiras, convocando os princípios do chamado fluxo da consciência, constitui o rosto da sua visceralidade e do seu sangue.
“A dor é assim uma nuvem perdida, e vem de dentro para fora. Por um instante, sente que ela se afia em si, num qualquer órgão inlocalizado do corpo. Depois é como se se tivesse convertido numa lâmina cega. Uma lâmina que se desloca de mansinho entre a pele e a carne, ou entre a infância e a ferida que agora se põe a boiar e depois se lhe atravessa toda no olhar.”
Eis, pois, o grande enunciado “também” – e perdoe-me João de Melo se pareço acantoná-lo, coisa que ele nunca pretendeu nem merece – de muito do que fora antes dele e de outro tanto do que seria depois a literatura açoriana, de Antero a Cristóvão de Aguiar, de Roberto de Mesquita a Daniel de Sá, de Nemésio (sempre ele) a Dias de Melo, de Natália a Álamo Oliveira e de tantos outros a tantos mais ainda. O grande manifesto identitário dessa geografia que é, antes do mais e por direito próprio, um olhar sobre o mundo.

Ao contrário de Nemésio
(mas não totalmente) por

Joel Neto
Joel Neto – Jornalista e escritor.  Terceirense. Uma das mais importants vozes açorianas, Joel Neto, é dono de uma prosa ficcional e de uma fantasia verbal que nos seduz. É um observador (ouso completar “compulsivo”) reflexivo do tecido social e da sua condição de ilhéu. Constitui um prazer ter a sua crônica sobre Gente Feliz com Lágrimas, publicada no Comunidades.

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