Ao Encontro do Joel Neto e de seus sítios sem resposta
– entre a realidade e a ficção –
A lembrança de um (re)encontro de escritores e jornalistas das duas margens atlânticas, no ano de 2005, que, entre descobertas, juntaram mundos apartados no tempo e no espaço e promoveram um diálogo plural desde a Ilha de Santa Catarina até o Porto dos Casais, no Rio Grande do Sul, serve como Pedra de Toque ao intento deste artigo. Durante o Encontro chamou especial atenção a admirável fala do escritor e jornalista terceirense Joel Neto ao revelar as responsabilidades e influências na escrita da nova geração, sem deixar de tributar o reconhecimento a uma geração de autores, ícones de uma literatura praticada no arquipélago, no desenho afetuoso do painel dos escritores – “os velhotes” – componentes do reconhecido Sistema Literário Açoriano. Era um vagido a ecoar por toda sala e a nos silenciar emocionados. Era a voz forte do jovem escritor considerado, por muitos, como um dos paradigmas do rejuvenescimento da literatura açoriana. Já conhecia este seu olhar frontal e de sincera reverência a uma geração de escritores responsáveis pela vida literária açoriana, tanto no passado quanto no presente.
Lembro que, tempos atrás, escrevi que descobrira o escritor Daniel de Sá um pouco antes que do Joel Neto, que o descobriu quando, ainda estudante, num concurso de ortografia havia recebido alguns livros oferecidos pela Direção Regional da Cultura, como deliciosamente relatou na comunicação Festas de Amigos e Cápsulas do Tempo apresentada em 2004 na Praia da Vitória. Só não confessei que também conhecera o escritor Joel Neto em 2003 quando, via o mesmo caminho da difusão cultural oficial, recebera a oferta do seu livro O Citroën que escrevia Novelas Mexicanas (2002). Ou seja, vinte anos depois chegava na Ilha de cá o eco de uma nova voz açoriana que lá de Lisboa se fazia ouvir, atento aos movimentos globalizantes e ao processo cultural que permeia o contexto social no qual se insere como jornalista investigador e escritor ficcional inteligente e intelegível.
Neste confronto de realidades e olhares conheci o talento de um exímio contador de histórias carregadas de humanidade e das paixões tatuadas na alma ou marcadas no corpo. Uma linha de narrativa surpreendente que privilegia a verdade estética, em que os sentimentos afloram e ganham força, ora no passear de seus personagens a desvendar conflitos e emoções, ora na figura do narrador a revelar o drama de episódios passados no contexto urbano de Lisboa (aqui, é um escritor citadino); ou a contar histórias passadas com as gentes, com as coisas, com a vida sem pressa na sua freguesia açoriana, na Ilha Terceira (ali, aflora a sua escrita insular, arquivos de afetos).
Uma narrativa bem urdida do princípio ao fim, onde o drama e a comédia se intercalam, se espreitam com intimidade própria de Melpômene e Tália, as musas que personificam esta dualidade da dramaturgia. Textos com grande mobilidade, assediosos e certeiros, prenhes de sabedoria bem humorada e aquela boa irreverência típica do ilhéu que, satírico, se permite à auto-ironia metendo o seu ponto de vista na pluralidade das vozes protagonizadas e nos registros cheio de ondulações, como um requebro de cabrocha, mas sem deixar cair o lirismo e ritmo da prosa.
“O que fez de mim um escritor, nesse inovidável dia em que se cumpriu o meu primeiro grande projecto de vida, foi o método de invenção de histórias que nasceu naquele mesmo instante, naquele mesmo assento seboso de Citroën envelhecido” (2002:42), confessa a certa altura no conto título do livro.
Cheia de curiosidade corri a ler a sua nota biográfica.
– Uauuuuu,mas é um menino! Exclamei, cheia de admiração. O menino das Ilhas, o jovem escritor de dois mundos nem sempre em sintonia, em infinitas descobertas e incansáveis procuras. Este já nasceu pronto, pensei. Já tem a sua manha, a sua marca em ferro e brasa feita, não há de mudar. Apercebi-me, naquele momento, que lia, a criativa escrita não de uma jovem promessa, mas sim de um escritor formado que ali estava a comprovar a riqueza do seu labor diário da palavra, da escrita escorreita, de uma prosa inigualável e sedutora.
Tudo isso me ressalta da memória nesse momento que escrevo sobre o seu novo romance Os Sítios Sem Resposta (Porto Editora,Lisboa,2012). Páginas de verdadeira arte literária na construção de uma narrativa complexa, competente na busca do entendimento da alma humana no centro de um enredo que enlaça vidas comuns do cotidiano de uma cidade grande ou de uma freguesia açoriana em cumplicidade telúrica com o mar que só ele sabe criar com a sua incrível capacidade de fabulação,por isso mesmo fascinante.
Por cenário, lugares-ilhas: Lisboa e os Açores. De um lado, o cerco da cidade grande com suas angústias, amarras e a fragilidade da relações sociais e, do outro, o cerco do mar abraçando a Ilha, o universalismo da freguesia, a intensidade da interação social, valores e tradições insulares, o imaginário e a beleza da paisagem circundante. Vivências absolutas e o sentido de pertença.
A trama, inicialmente, parece engendrar as certezas e as incertezas de um homem que resolve mudar de time de futebol (Sporting pelo Benfica como poderia ser o Avaí pelo Figueirense de Florianópolis) e os confrontos pessoais e sociais decorrentes de sua intempestiva mudança de “paixão” incluindo uma certa angústia em dizer ao seu pai. Tudo pode ser equacionado como um jogo de futebol com ataques, defesas, escanteios, penalidades, recuos, avanços e o “gol de placa” – a redençao. Tudo acontece entre as quatros linhas do campo, entrecruzando-as, atravessando espaços e o tempo intemporal.
Joel Neto,delineia a prosa de ficção correndo neste campo aberto, entrelaça gerações, sentimentos, histórias de vidas em mundos paralelos: Lisboa, o sítio da vivências dos personagens principais e São Bartolomeu dos Regatos, a freguesia terceirense, torrão natal de Miguel (figura central e cínico narrador ) onde não apenas vive sua família, mas protege a sua alma açoriana e os verdadeiros afetos.
No fluir da trama, Joel Neto deixa emergir livremente estes mundos com seus fortes contrastes e confrontos. É incansável na convergência do olhar ora posto na vida solitária, cética, a fender a modorra dos dias em cansaços estéreis e a satisfação de desejos libidinosos, onde o amor não entra. Ora, no desvendar intimidades de sua memória e abrir o baú de ontem e confrontá-los com os arquivos informatizados de hoje, num repensar de toda uma vida.
Joel Neto, dono de uma prosa ficcional e de uma fantasia verbal que nos seduz, é um observador (ouso completar “compulsivo”) reflexivo do tecido social e da sua condição de ilhéu. Sem medo, espelha “a cara” do açoriano integrado na cosmopolita Lisboa mas, ainda assim, “Ilhéu” de corpo e alma a regressar ao seu chão insular sempre. “ Para ser sincero, e apesar das já quase duas décadas que levava de exílio, eu continuava a voltar à terra como se realmente pudesse acordar ao contrário, contorcendo-me e espreguiçando-me e depois fechando-me em concha, até, enfim, adormecer”(p.140-141).
Que maravilha mergulhar nas suas páginas lavadas de amor, de boniteza, de cores, de cheiro da terra, de enveredar pelos caminhos do Entrudo ou dos bodos e funções do Espírito Santo, de conversas temperadas com espírito e sentir a força omnipresente e carinhosa da Maria Carminda, mas, principalmente, deixar-se envolver na intensidade dos sentimentos que une pai e filho de um jeito muito terno. O que me fez recordar o retorno à casa paterna de Arkádi Kirsánov em Pais e Filhos de Ivan Turguenyev (1818-1883).
Gosto muito do que leio em Os Sítios sem Resposta, gosto da manha singular, impregnada de humanidade, da escrita de Joel Neto
que conhece bem os sítios de regressar, de ficar, de sentir. Só não quer dar as respostas por birra, para intisicar o leitor.
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NETO,Joel. Os Sítios Sem Resposta,Lisboa,Porto Editora,2012.
Terra Chã-Ilha Terceira
Créditos imagens: acervo do escritor Joel Neto