Permitam-me que comece pelos sinais exteriores que abrem as portas da pessoa chamada Lélia da Silva Pereira Nunes.
Percebe-se, logo ao primeiro olhar, a paixão vibrante com que Lélia abraça a vida, em cada dia. Entende-se, no vislumbre do primeiro sorriso, que a tenacidade, a intrepidez, a coragem, a energia luminosa são características indisfarçáveis da sua personalidade. Compreende-se, enfim, quando se ouvem as suas primeiras palavras que é um ser com uma sensibilidade extraordinária, um poder cativante, uma magia singular que emana da sua aura; ao ler-se, confirma-se como se reflecte na sua escrita.
A Lélia é uma açoriana de 263 anos – está muito bem conservada para a idade. Açoriana de Santa Catarina ou escritora brasileira dos Açores – como tão bem sintetizou o nosso inefável comum amigo e Poeta brilhante Eduíno de Jesus.
Creio – e nunca falámos acerca disto apesar da nossa amizade sem fronteiras de quinze anos – que não foi uma opção própria a sua açorianidade; foi – direi – como um desígnio alheio à sua vontade que a colocou neste caminho, nesta esquina – parafraseando o título aqui presente -, um desígnio que a sua vontade logo assumiu e tornou cúmplice como um incontornável atlântico que haveria de cruzar dezenas (quiçá centenas?) de vezes para descobrir e redescobrir e comparar muitos e secretos recantos da sua açorianidade interior, da que resiste na sua ilha – Santa Catarina – e da que povoa estas ilhas já tocadas pela globalização, mas ainda com alma própria.
Lélia é uma açoriana e uma catarinense de dez ilhas e em todas elas vai recebendo inspiração e vai deixando as suas marcas. Inspiração e marcas que são como a Lélia profunda: intensas, transversais, vigorosas, simbólicas, setas do real e do imaginário que o cupido desfechou no seu coração pleno de amor pelas ilhas.
A Lélia é uma das responsáveis pela construção da interculturalidade entre Santa Catarina e os Açores – e o inverso também é verdadeiro. Por ventura, a construtora mais activa e mais visível, a que jamais desiste perante uma dificuldade ou vacila frente aos obstáculos que se erguem. Desde que elegeu esta causa como sua, foi transformando todos os ventos e tempestades que, aqui e além, iam surgindo, em sol e em bonanças. Paulatina (embora a paciência não seja o seu forte) e perseverantemente, de uma rocha tentou sempre fazer brotar uma flor.
A Lélia é uma vencedora e os vencedores conhecem as dores da negação e reconhecem as dificuldades, mas capitalizam-nas para reforçar os seus objectivos e alcançar as suas metas positivas, com maior alegria: vitória suada é mais saborosa.
É assim esta Lélia que eu conheço: buliçosa e irrequieta, sempre pronta para um desafio e sempre acreditando que Deus é Pai e ajuda quem Nele confia. Mas nunca deixando nas mãos de Deus o que ela própria pode e sabe construir.
Desbravar caminhos e meter-se ao mar como uma guerreira – é ela. Mas também sabe ser observadora requintada e atenta, elegantemente cuidadosa nas suas actividades, distinta nas suas iniciativas. Sim, porque a Lélia faz mais do que escrever na vida – e isto sem qualquer conotação negativa para quem faz da escrita o seu trabalho exclusivo.
Socióloga e etnóloga, aposentada da Universidade Federal de Santa Catarina, onde ainda dá, quando é solicitada, a sua colaboração; activista na Casa dos Açores da Ilha de Santa Catarina, responsável pelas relações internacionais; colaboradora de Prefeituras várias em projectos culturais; conferencista convidada em toda a América do Sul, do Norte e em Portugal Continental – onde ainda há poucos dias este mesmo livro que hoje nos reúne aqui foi apresentado pela Prof. Doutora Maria Beatriz Rocha Trindade, a ilustríssima Senhora que, por todo o Mundo, ensina Migrações.
A Lélia exerceu também funções políticas: foi Secretária de Cultura e Superintendente da Fundação Franklin Cascaes – cargo que detinha quando nos conhecemos e que desempenhou com invulgar dinamismo.
Foi graças à Lélia que conheci o património literário de Almiro Caldeira, Othon d’Eça, Virgílio Várzea, Flávio José Cardoso, Adalice Maria de Araújo, Cruz e Silva. Agradeço esta insinuante incursão catarinense nas letras, bem como ter-me apresentado os nossos comuns amigos Aldírio Simões e Lauro Junkes – infelizmente já nenhum entre nós, no chamado mundo dos vivos, mas muito presentes no seu legado e nas saudades que nos deixaram. Foi também a Lélia que me abriu o caminho da amizade com Semy Braga, Marcelo Passamai e Sheila Cagarro. Aqui fica a minha gratidão também pelo muito que aprendi com eles.
Poderíamos ficar aqui umas horas mais tendo a Lélia pessoa como tema, mas é tempo de passarmos à Lélia autora e a esta Esquina das Ilhas, embora uma e outra sejam inseparáveis e indizíveis.
É, porém, sempre desejo que quem faz uma apresentação, tentar um mergulho na essência do que apresenta. E a essência desta Esquina é de uma grande autenticidade, um diálogo que Lélia alimenta, na sua permanente interculturalidade, consigo própria, com os leitores, alguns eminentes escritores e ensaístas – já referi Eduíno de Jesus – e acrescento Daniel de Sá (aqui prefaciador), Emanuel Félix, Onésimo Teotónio Almeida, Dias de Melo, Urbano Bettencourt, Vamberto Freitas, Mayone Dias, Diniz Borges, entre outros.
Esquina das Ilhas reúne crónicas, memórias, crítica literária, artigos, textos, reflexões, emoções e sensações, publicados dispersamente entre 2004 e 2011. Esta Esquina simboliza um encontro da criação com a sensibilidade, do conhecimento com a homenagem a quantos honraram a história desta família açoriano-catarinense e também da etnologia com o jornalismo comentarista. Esquina das Ilhas é o saber do real e o sabor do imaginário que o precursor catarinense Franklin Cascaes tão sabiamente nos legou e que Lélia tão bem homenageou.
Ilhas de cá e ilhas de lá são as duas partes do livro com que Lélia nos presenteia, em convergência, ilhas unidas pela colonização açoriana em Santa Catarina e ilhas unidas também pelo linguajar, pelas crendices, pelas lendas, pelos símbolos mágicos do quotidiano, pelos sinais dos intelectuais, pelos pensadores, percorrendo uma única estrada: a estrada do Ser Humano à procura de Si e do Além.
Lélia muito apelativa, fina e elevada, mas simultaneamente terrena e investigadora do concreto, oferece às Ilhas de Cá e de Lá o que tem de melhor e único, a sua minudência e a sua universalidade, a sua singularidade e as suas múltiplas dimensões, a sua Esquina das Ilhas e todas as Estradas do Mundo que teve a felicidade de percorrer.
Lélia tem outros títulos publicados e tem outras facetas de escritora, de açoriana, de catarinense, de brasileira, de cidadã do mundo e de Mulher. Lélia é uma Mulher e um Mundo que não cabem num livro.
Por que não começar a descobri-la nesta Esquina, aqueles que a desconhecem?
E quem já a descobriu, por que não continuar a viagem do Ser humano que não cabe nas suas publicações nem no blogue da rtp comunidades que partilha com a nossa também comum amiga (minha amiga de sempre), autora de estudos inovadores para estas ilhas, a excepcional académica Irene Blayer, jorgense de nascença e omnipotenciária de coração?
E por que não partilhar um dia, umas horas, esse deslumbramento que é a descoberta da Lélia Açoriana e da Lélia Catarinense, e da Lélia cidadão do Mundo, três em uma só, sempre autêntica e sempre rejuvenescida pelo amor e pela energia de Ser?
Fica aqui o convite, que o tempo não pára e temos de senti-lo enquanto o temos. A Esquina das Ilhas é uma maneira de viajar nele e voltar a casa. A nossa Casa, o nosso Mundo, a nossa Humanidade, eivada de culturas, mas na essência, apenas e só Humanidade.
Alzira Silva
31.10.2011