Apresentação do Livro
“O Mundo Que Eu Vi”,
de Genuíno Madruga
Muito já vimos (na televisão), ouvimos (na rádio) e lemos (na imprensa) sobre as viagens de circum-navegação de Genuíno Madruga.
A partir de hoje, com a edição desta publicação, provinda do punho do próprio navegador, podemos também acompanhar as suas aventuras, ao pormenor, sentir as suas dificuldades, conhecer as suas angústias, valorizar (ainda mais) a sua tenacidade e saborear a coragem de um homem que no mar personifica a determinação de muitos de nós, portugueses e açorianos, marítimos ou não, dos nossos dias e de outrora…
Genuíno Madruga completou em Junho de 2009, nas Lajes do Pico, a sua segunda viagem de circum-navegação, em solitário e à vela, uma jornada marítima que havia iniciado em Agosto de 2007 também na vila baleeira da ilha montanha.
O fio condutor deste livro é, precisamente, esta viagem – muito mais extensa, exigente, perigosa e heróica que a primeira – mas, na realidade, a sua “volta ao mundo” inicial, empreendida entre Outubro de 2000 e Maio de 2002 (com partida e regresso à cidade da Horta), é igualmente presença constante no relato que agora nos é apresentado neste livro.
Fica-se, até, com a sensação que a circum-navegação concluída no sábado de Espírito Santo, 18 de Maio de há nove anos, foi um teste, a preparação para uma odisseia maior, iniciada há quatro anos, e que levaria o veleiro «Hemingway» ao Sul do Brasil, ao Uruguai, à Argentina, ao Chile, à ilha de Páscoa, mas, sobretudo, ao Cabo Horn (o desafio maior para qualquer navegador mundial) e a Timor-Leste, neste caso pela simbologia da escala na mais recente nação luso-falante e pela recepção ao mais alto nível do Estado local. [Recorde-se que Genuíno Madruga foi recebido em Díli pelo Presidente da República e Prémio Nobel da Paz, José Ramos Horta, tendo tido ainda a especial honra de ter esta figura incontornável da história da lusofonia a bordo do seu iate e contar, ademais, com o mais alto magistrado da pátria timorense no acompanhamento da largada da ilha do crocodilo!] Nesta sua última viagem Genuíno Madruga foi também recebido pelos embaixadores de Portugal em Buenos Aires/Argentina, Díli/Timor-Leste e Pretória/África do Sul e escalou São Luís do Maranhão, primeira terra brasileira para onde os açorianos emigraram, há três séculos atrás.
Será que a primeira volta ao mundo do «Hemingway» abriu o apetite do seu patrão/skipper para uma aventura maior, a conquista derradeira, pela travessia do Cabo Horn, de oriente para ocidente, contra as correntes e ventos predominantes, ao invés da rota aconselhável e até ao contrário do trajecto realizado pela esmagadora maioria dos veleiros e velejadores que se lançam nessa que se pode catalogar – como se diz das façanhas em montanha, por parte dos alpinistas – uma “conquista do inútil”, não no sentido de ser acto sem sentido, valor ou utilidade, ou quiçá tresloucado, mas sim pelo facto da motivação para o feito ficar, em última análise, na esfera íntima dos respectivos protagonistas, mesmo que as razões, se publicamente expostas, possam ser mais ou menos compreensíveis?…
Seja como for, o texto que hoje nos é dado a conhecer embora siga, na base, o itinerário da circum-navegação via Cabo Horn, a verdade é que nos leva também ao longo da viagem – a primeira – que se processou através das Caraíbas, do Canal do Panamá e das ilhas Galápagos.
«O Mundo Que Eu Vi» é escrito em linguagem simples, sem delongas despropositadas, mas com evidente precisão, alto sentido apelativo e com uma característica que o torna viciante: faz-nos viajar com o autor, ao seu lado, no seu veleiro, leva-nos a sentir as dificuldades, angústias e temores do navegador Madruga, mas também as alegrias e satisfações por cada milha ultrapassada, o prazer do reencontro de pessoas conhecidas na viagem inaugural e a emoção de travar contacto com gentes tão distantes e diferentes de nós e com alguns altos responsáveis comunitários, sociais e políticos que foram sendo encontrados / conhecidos / contactados ao longo dos dois percursos em redor do globo.
A publicação neste dia editada pela VerAçor – empresa que se saúda, pela aposta agora materializada – terá dois tipos de destinatários primordiais: aqueles que seguiram, de alguma forma, as travessias oceânicas do nosso “aventureiro-mor” e que aqui procuram informação adicional ou a recordação de notícias já do seu conhecimento anterior e, por outro lado, todos quantos pouco ou nada saibam das rotas do «Hemingway» por todos os mares do mundo e que agora podem conhecer o seu G(g)enuíno protagonista, segundo português e primeiro açoriano a concluir uma viagem de circum-navegação à vela em solitário e primeiro cidadão nacional a fazê-lo com escala na ilha de Hornos (Horn) e o seu temível cabo, cemitério de muitos marítimos, certamente provindos de grande parte das nações do planeta, última fronteira austral das Américas, terra e mar de tempestades, confluência de oceanos em confronto permanente de águas, de neve, de gelo e de icebergues… Mar, também, de golfinhos brancos.
Como se sabe, acompanhámos as viagens de Genuíno Madruga semana a semana, sem falta, por via da realização de um programa de rádio (quer em 2000/2002, quer em 2007/2009), primeiro na Antena 9, da Horta, depois, em cadeia, em sete estações, das Flores a Santa Maria. Seguimos também, diariamente, o desenrolar das aventuras e desventuras do veleiro «Hemingway», pela página na Internet, sempre prontamente fornecida de novidades pelo Marco Dutra e pelos contactos frequentíssimos com o comunicador “oficial” desde terras açorianas para bordo do iate de Genuíno Madruga, José António Mourinho, radioamador faialense sempre ao leme, nas horas certas, da sua estação de ondas hertzianas de alta frequência (HF). Mantivemos conversas regulares, igualmente, com o comandante Marco Madruga e com a Beatriz Moraes Madruga.
Dir-se-ia: para quem seguiu, assim, as duas aventuras deste pequeno veleiro a que Genuíno Madruga deu o nome de uma das grandes figuras das letras mundiais e autor do magistral “O Velho e o Mar”, Ernest Hemingway, «O Mundo Que Eu Vi» não tráz nada de novo!
Puro engano: não só há dados ainda não escalpelizados anteriormente, não revelados ou não divulgados, ditos ou escritos, como se sente, um renovado prazer a acompanhar, outra vez, estas duas voltas ao mundo, com a particularidade, como já se disse, de nos sentirmos, também, a viajar, a transpirar e (quase) a bater o queixo de frio, a sentir as brisas e ventos nos brandais, a nos arrepiarmos nas ocasiões de maior dificuldade… Também nos sensibilizamos com as recepções organizadas pelas comunidades portuguesas espalhadas por todo o mundo, como a de Comodoro Rivadavia, na Argentina, por sinal a mais austral para os nossos conterrâneos emigrados. E sensibilizamo-nos com as recepções dos agrupamentos de escuteiros, da mesma forma que vivenciamos uma alegria estranha quando Genuíno Madruga vai à procura de populares que conhecera sete anos antes e os encontra, de novo, por altura da segunda aventura!… No relato da entrada de cada porto sentimos, igualmente, a segurança da chegada e à partida levamos a nostalgia da(s) despedida(s).
«O Mundo Que Eu Vi» não é, assim, um mero diário de bordo, embora a narrativa, de volta em quando, recorra a tal registo para nos relatar com a maior das fiabilidades o estado de espírito do autor e navegador na altura precisa em que determinado facto relevante ocorria ou acabava de ser vivido ou testemunhado.
A maior das surpresas que este livro nos provocou foi o
acompanhamento, pela leitura, da viagem no trajecto entre o Cabo Horn (ou melhor, Puerto Williams) e a cidade chilena de Puerto Montt, empreendida entre Fevereiro e Março de 2008. Primeiro, ficamos com a percepção de ter sido a fase mais complicada do conjunto das duas viagens (quase trinta dias com condições muito adversas de mar, ventos, correntes, ilhas, ilhéus e baixios traiçoeiros, nevoeiros, frios e gelos, mãos inertes pelas temperaturas escassas, canseira acumulada, necessidade de manter o «Hemingway» a salvo, a cada momento, e a obrigação de prolongar ao máximo a presença do seu comandante/timoneiro ao leme… enfim, e em última instância, a luta pela superação do aviso/desafio/sentença das autoridades do fim do mundo, na Terra do Fogo: aquele percurso não poderia ser feito em menos de três meses!… O «Hemingway» completou-o em… 25 dias!!! O esforço necessário para o conseguir encontramo-lo naquelas que são – na nossa opinião – as melhores páginas desta publicação. Dali, o autor lembra, designadamente: “Junto à costa as ondas ao rebentarem de encontro às rochas levavam o mar por estas acima e por fora nos baixios aumentavam ainda mais de altura, encapelavam e rebentavam. Foi neste cenário que me apercebi claramente que a minha vida estava exclusivamente dependente do bom funcionamento do motor. (…) Nunca antes havia navegado com tais condições de tempo e em sítio tão perigoso”. Adiante, acrescenta: “Se um qualquer vivente visse o Hemingway em tais condições, certamente que não saberia distinguir se se tratava de um barco ou de um submersível. (…) Naquele dia, não sei como, enjoei mesmo sem haver comido”. Foram “vinte e cinco dias de difícil e penosa navegação, frio glacial, chuva gelada, granizo, ventos fortes e contrários, uma humidade de gelar os ossos, mar por vezes tempestuoso, ondas enormes, que não perdoariam o menor descuido”.
À chegada a Puerto Montt Madruga travou contacto com pescadores. Diz-nos: “Estavam curiosos por conhecerem o barco no qual eu tinha navegado pelos mares do Sul. (…) Vi claramente nos seus rostos admiração. Eram todos homens do mar”…
Curioso é também que, já a dois ou nove anos de distância do final de cada uma das viagens de volta ao mundo realizadas, olhemos para a história da última década e verifiquemos que Genuíno Madruga viveu a bordo do seu iate ou durante os seus percursos por terra, em escala, momentos marcantes dos tempos contemporâneos, que aqui são também lembrados, porque na altura própria foram devidamente registados: a título de exemplo, o ataque às torres gémeas do World Trade Center, em Nova Iorque (a 11 de Setembro de 2001), a queda do avião da Air France ao largo do arquipélago brasileiro de Fernando Noronha (a 1 de Junho de 2009), a tomada de posse da primeira mulher Presidente da República da Argentina (segunda na América do Sul), Cristina Fernandez Kirchner (a 11 de Dezembro de 2007), e a instituição da autonomia na ilha de Rodrigues (com participação do nosso velejador, em 2001, na primeira Assembleia Constituinte do Movimento Rodriguez), ilha pertencente à República das Maurícias, Estado independente do Reino Unido desde 1968. Noutra faceta, como se pode ler, destacadamente, neste livro, é relevada, também, a morte, em Setembro de 2008, do escritor picoense Dias de Melo que fica ligado às viagens de Genuíno Madruga, ele que havia presenciado a partida do «Hemingway» do Pico, em dia de festa de Nossa Senhora de Lourdes do ano de 2007 e dedicou dois poemas ao intrépido navegador (por isso, na altura do seu falecimento, a bandeira nacional foi colocada, por três dias, a meia-haste, a bordo do veleiro).
As efemérides da vida deste nosso ousado navegador também tiveram destaque especial além-mar durante as suas estadias em terra-firme: “O meu aniversário de 2007 foi na verdade muito especial, teve lugar no Clube Recreativo Português (…) [de Buenos Aires], estiveram presentes à volta de 800 pessoas e actuaram três grupos folclóricos”.
As viagens deste Madruga – açoriano determinado, bom-teimoso e homem-comum acima dos comuns, como aqui testemunhamos mais intensamente – foi também um especial (se calhar, único, pela dimensão, em extensão, e pela amplitude, em termos geográficos) momento de divulgação do nome dos Açores, de projecção destas pequenas ilhas no firmamento planetário e de afirmação, mais uma vez, da especial vocação das gentes de Portugal para calcorrearem o mundo, por via marítima, contra ventos e marés, contra receios, fados e profecias, contra o imobilismo e a nossa original pequenês, rectangular… Aqui uma revelação, extraordinária: “Visitei (…) o Museu Marítimo [de Ushuaia, Argentina, última cidade austral do continente americano], onde para minha surpresa e satisfação, encontrei um bote em miniatura, em osso de cachalote, chamado «Ester», com a legenda de: Bote Baleeiro dos Açores, ilha do Faial”.
Continua…)