Como os autores do livro habituaram-se na Suíça a não tratar as figuras públicas pelos títulos e como o verdadeiro debate sobre o espaço público democrático pressupõe igualdade, começo a tratá-los pelos seus nomes de cidadãos.
Antes de mais, gostaria de referir que é uma grande honra estar hoje a apresentar o livro de tão ilustres e notáveis figuras do panorama intelectual, político e académico português. O Grupo de Genebra, marcado por um espírito de luta constante, militância política e inconformismo face a um regime repressivo e claustrofóbico das liberdades individuais – fica, indiscutivelmente, marcado na História política contemporânea como um dos impulsionadores da democracia pluralista em Portugal.
No dia em que o Prof. Medeiros Ferreira telefonou a convidar-me para apresentar este livro, Pátria Utópica, aceitei de imediato o desafio. Considerando que a Sociologia dos Intelectuais tornou-se uma área central na minha investigação académica, e sendo o grupo de Genebra um grupo de intelectuais que incorporou, e ainda incorpora, um espírito de oposição e não de acomodação, que desafia os valores míopes em prol da liberdade e justiça social; foi impossível não entrar no mundo destes intelectuais (que pessoalmente admiro) que “provocaram abalos sísmicos” no sistema, sacudiram com um regime bafiento e refrescaram-no com uma ética cosmopolita fruto dos tempos de exílio.[i]
Em Pátria Utópica os autores revisitam em conjunto a decisão do exílio, o seu engajamento político em clima universitário, a estadia em Genebra como espaço marginal de resistência, de formação pessoal e académica e, por fim, o seu regresso à Pátria. A referência às aspirações e lutas políticas, à prisão e tortura nalguns casos, às discussões nos Cafés Landolt e du Commerce em Genebra, aos debates nos Comícios europeus, às incertezas e certezas pessoais, às utopias e distopias faz parte da aventura comum, embora com trajectórias singulares, destes cinco protagonistas. Ao longo das cinco narrativas, torna]se claro que o exílio, encarado pela tradição literária do exílio[ii] como um “entre-lugar”, um “lugar em trânsito”, não representou para os autores nem um cárcere, nem uma mera passagem física, temporal e objectiva, mas foi, essencialmente, um locus de construção e reconstrução de um novo eu, potenciador de uma experiência interpessoal e intercultural que ultrapassou as barreiras instauradas e gerou espíritos cosmopolitas. Contudo, o paradoxo do exílio, o sentimento ambíguo que oscila entre exclusão, a nostalgia, a ausência, a perda de raízes, por um lado, e os novos territórios de experiência, de liberdade e de esperança, por outro, modelou a experiência tão inextrincavelmente unida ao devir político e social deste grupo de intelectuais.[iii] Neste sentido, compele-nos pensar sobre o exílio, pois segundo Edward Said, “[…] A moderna cultura ocidental é, em larga medida, obra de exilados, emigrantes, refugiados.”[iv]
Porém, para compreender as circunstâncias que contribuíram para o exílio do Grupo de Genebra, precisamos de retomar a primeira parte do livro intitulada “Em Portugal, abafava-se”. António Barreto assume que “[e]stava farto de censura, de jogar às escondidas, do atraso cultural, do despotismo de toda a espécie. Sonhava com revoluções […]”, queria ler jornais feitos em liberdade e ver filmes sem censura. O mundo estava à sua espera (40); Ana Benavente, a “adolescente revoltada e voluntariosa”, e que incorpora o papel da mulher, do feminino na contracultura, sonhava com a liberdade num “país que era fechado, autoritário e pobre, o regime era fascista e colonialista” (57); Eurico Figueiredo, envolto nas estórias de heroísmo e bravura familiar, envolveu-se no movimento estudantil e luta politica a partir de 24 de Março, 1962. A partir desta data não pôde recuar. Após a prisão pela PIDE e posterior transferência para Coimbra, assumiu o exílio como destino. José Medeiros Ferreira, o “representante organic da geração estudantil que estava a lutar contra a ditadura e começava a opor-se activamente à guerra colonial” (79), desempenhou funções determinantes nos círculos dirigentes e acabou preso pela PIDE. Com uma “Carta Aberta ao Povo Português” a explicar as razões da sua partida: a recusa “da mais abjecta das guerras – a guerra colonial [que] não convinha à nação por um duplo motivo – ser injusta e não constituir solução para o problema”[v], inicia uma nova etapa da sua luta e resistência política. O forte abraço e firme afirmação do seu pai “Já que te meteste nisto vai até ao fim” aquando uma das suas visitas a S. Miguel, da-lhe certeza para seguir a luta. Agora no exílio. Valentim Alexandre, sentia-se não só na oposição do regime salazarista, mas também do “lado de fora” por não ser católico. Os livros que o seu avô ofereceu como O Zero e o infinito de A. Koestler, instigaram uma aura romântica em torno da actividade clandestina. Contra a sua convicção política e compromisso com a denúncia dos males do regime for a mobilizado para a Guiné que acabou por desertar “por imperativo de consciência” e em 1971, livre da tropa, rumou para a Europa” (117).
Enquanto que as manifestações contra repressão política de regime autoritário germinavam pelas universidades e as perseguições aumentavam, os membros do Grupo de Genebra iam se despedindo da Pátria e chegando à Suíça. António Barreto chega com 20 anos em 1963; Ana Benavente e Eurico Figueiredo em 1965; José Medeiros Ferreira em 1968 e Valentim Alexandre em 1971. Na fase do exílio, o grupo nunca vacila relativamente à sua missão intelectual e política. Esta é marcada por novas redes de intercâmbio com outros grupos de resistência portugueses[vi] e até mesmo internacionais. Este grupo interiorizou o compromisso do intelectual autónomo, liberto de quaisquer restrições e, na perspectiva de E. Said, que fala a verdade ao poder (Ver Said, 1993: 77). Neste caso, o capital militante no exterior serviu para informar a Europa sobre a repressão exercida em Portugal e desmistificar a imagem de Portugal na opinião pública. Esta acção de denúncia realizava-se não somente com boletins e panfletos, mas também com a participação em eventos universitários suíços e europeus. Além desta acção de propaganda e apoio às lutas estudantis em Portugal, os exilados nutriam de um espírito de solidariedade extraordinário para com os novos estudantes exilados. Auxiliavam na burocracia e estadia.
[i] Ver E. Said, Representações do Intelectual: As Palestras de Reith de 1993. Lisboa: Colibri, 2000.
[ii] Ver, por exemplo, as reflexões de importantes autores diaspóricos, como: Edward Said, Theodor Adorno, Giorgio Agamben, Hannah Arendt, Stuart Hall, James Joyce, Claudio Magris, al. Camus, entre outros.
[iii] Compare Guillén: “Inúmeros, os desterrados. Repetida, reiniciada um sem]fim de vezes, interminável, a experiência do exílio ao longo dos séculos. Todavia, ela muda. Modificam]se as consequências, as dimensões, as características e os desequilíbrios. Não cabe pôr em dúvida a importância dos condicionamentos históricos que, em cada caso, modelaram uma experiência tão específica, tão inextrincavelmente unida ao devir político e social dos povos” (Guillén, O Sol dos Desterrados: Literatura e exílio. Lisboa: Editorial Teorema, 2005: 15).
[iv] Said, E., Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia
[v] Medeiros Ferreira, J., “Carta Aberta ao Povo Português”, Julho 1968
[vi] Ver Encontros de Estudantes Portugueses no Estrangeiro que se realizaram em Varsóvia em Julho de 1967, e em Paris, em Dezembro de 1968. (Pereira, in O Longo Curso: Estudos em Homenagem a José Medeiros Ferreira, Lisboa: Tinta da China, 2010: 315).
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