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Mas o afinal o que significou o exílio para estes cinco intelectuais?
Para António Barreto foi a descoberta de “ideias e cultura para além dos estereótipos realistas. Havia pensamento e liberdade para além dos catecismos. E havia universos para além do catolicismo, do comunismo e do Direito […] Agora vivia em liberdade, ponto final” (127). O sociólogo refere a Universidade de Genebra – moderna, livre, tolerante – como contributo maior para o seu crescimento; o cosmopolitismo de Genebra, da cidade que descreve com nostalgia e admiração (143); a sua experiência como assistente (131), como investigador nas Nações Unidas; alguns dos seus amores e desamores com suíças de cantões distintos; a amizade com os co-autores deste livro: “um grupo de amigos com passado e esperanças comuns” (141) e que deve “talvez as mais interessantes discussões políticas sobre Portugal” (140); o abandono do Partido Comunista; a publicação da revista Polémica e o sentimento de desenraizamento, de estrangeirado quando declara que “estrangeiro uma vez é estrangeiro para sempre” (141-142). Este desabafo está em perfeita sintonia com a declaração de um outro testemunho do exílio, estou a referir-me Elie Wiesel, Nobel da Paz, quando afirma que: “O antigo refugiado permanece refugiado para o resto da vida. Escapa de um exílio para se projectar noutro, não se sentindo em casa em parte alguma, não esquecendo nunca donde vem, não parando de viver no provisório”[i]. Ora, esta sensação de nao-pertença foi intensamente vivida por Ana Benavente. Escreve que no início, sentia-se de passagem, num lugar de empréstimo. Era uma estrangeira, à procura de liberdade, de vida, de um caminho que um dia lhe permitisse regressar (149). Para além jovem, era mulher e estes dois aspectos faziam com que fosse muitas vezes levada pouco a sério. Mas a irrupção do Maio de 68 deu a ela e a todas a mulheres, assevera ABenavente, segurança, ousadia e libertação plena: “Assembleias, debates, identidades reencontradas e reconstruídas, amizades e amores para toda a vida. Um sopro de liberdade.” Assim foi o seu Maio (160). A sua frontalidade, o seu agudo sentido crítico, e forte posição feminina fez com se tornasse uma intelectual altamente politizada que não assumiu o papel de exilada portuguesa que lutava pela democracia emancipadora em Portugal, mas também teve um importante contributo para movimentos de índole internacional. Enquanto lia o Homem Unidimensional de H. Marcuse, criava “grupos de acção antiimperialista”, o “Movimento de Libertação das Mulheres”, militava contra a injustiça, contra a opressão, pela liberdade, pela democracia, pela igualdade. Integrava-se igualmente na revista Polémica e desenvolvia a sua formação académica. Deixou o PCP e tornou]se, assevera, mais ‘spontex’ (sem partido, mais autónoma), chegando até a viver com um grupo de amigos numa comuna. Eurico Figueiredo aponta no seu testemunho duas fases distintas na Suíça: o pesadelo em Lausana (doença, frequência às aulas e exames todos seguidos) e os melhores tempos da sua vida em Genebra. Em Genebra pôs o acento tónico na sua vida profissional. Num departamento internacionalmente competitivo, conseguiu lugares de chefia e conduziu com êxito serviços de psiquiatria de vanguarda e fez doutoramento em Medicina pela Universidade de Genebra (187). Contribuiu activamente na revista Polémica, terminou a sua militância no PCP e encara os seus anos no exílio como os mais saudosos da sua vida (188). José Medeiros Ferreira, “o grande animador da boa disposição” do grupo, afirma Eurico Figueiredo, ao chegar a Genebra requereu imediatamente o estatuto de refugiado político e matriculou]se na Faculté des Sciences Economiques e Sociales, onde se tornou mais tarde assistente de duas faculdades. Participou com ABarreto e Carlos Almeida em Encontros sobre a Esquerda na Europa, foi a Comícios em Londres e Manchester com Amílcar Cabral, adoptou um pseudónimo para escrever na revista Polémica: José Quental (tudo estava no Quental para o Açoriano, diz) e em 1973 concebeu a tese da política dos três dd (descolonizar, democratizar, desenvolver) que enviou para o Congresso em Aveiro. Embora exilado conseguiu participar no censurado espaço público português e a sua tese acabou por ter alguma influência nos acontecimentos. Tal como os seus coautores, os seis anos de exílio acabaram por ser os melhores da sua vida. Finalmente, Valentim Alexandre, o último a chegar à Suíça e acolhido na casa de Eurico Figueiredo e posteriormente na casa de Medeiros Ferreira. Pediu equivalência à licenciatura em Direito com vista a um doutoramento. No exílio, deu continuidade à sua formação académica, mas como chegou mais tarde, teve mais dificuldades na integração. A sua relação com a Suíça foi sempre, assevera, “a de um espectador interessado”. Em 1973 associou]se a ABarreto, JMFerreira e Carlos Almeida na elaboração do livro SuissePortugal, de l’Europe à l’Afrique. Valentim Alexandre conta que nunca pensou que o capítulo que escreveu “Colonialismo Portugues-Realidade e Mito” tivesse uma influência tão preponderante no caminho académico que veio a seguir: a historiografia.
O exílio termina a 25 de Abril, 1974 e o Grupo de Genebra está determinado a regressar à Pátria. O regresso foi para todos, independentemente do percurso profissional, político e académico, um misto de emoções e contradições; alegrias e tristezas; sentimento de pertença e de perda; de esperança, liberdade extrema e desilusão. A gratidão e o elogio à cidade que os acolheu – Genève, é constant nos cinco trilhos de memória. Relembram a organização, a limpeza, a seriedade e pontualidade, os cheiros, os cafés, as bibliotecas, a universidade, os jardins, as pessoas amigas, o cosmopolitismo que pairava pela cidade. Enfim, uma experiência mágica, agora quase onírica, no imaginário deste Grupo de intelectuais que nela construíram a sua vida “entre parêntesis”. Genebra deu-lhes capital cultural e um espaço livre onde puderam lutar pela liberdade de uma Pátria que permanece, todavia, utópica.
“A despedida da Europa” (142) como ABarreto adverte foi difícil, mas a edificação de uma sociedade livre e pluralista em Portugal e o sentido de cidadania cativou o grupo de intelectuais comprometidos. A acção política destes militantes enquadra]se na abordagem de B. A. Misztal (2007), que afirma que através de qualidades ímpares como coragem cívica e criatividade, os intelectuais têm de ajudar a promover uma sociedade emancipadora sustentada em valores democráticos e humanísticos. A intervenção cívica dos membros do grupo teve registos diferenciados. ABarreto e JMFerreira envolveram-se na política, foram ambos ministros do I Governo Constitucional do PS e em 1979 coelaboraram o “Manifesto Reformador”. ABenavente chegou a ser mais tarde secretária de Estado da Educação no governo de António Guterres. EFigueiredo foi deputado do PS pelo círculo do Porto. Os cinco acabaram por seguir carreiras académicas, certamente pela liberdade que implica. Medeiros Ferreira explicita mesmo que “ser universitário foi ainda uma forma de ser livre”.
O novo ciclo, o ciclo da construção de uma pátria perfeita, mantem-se todavia inacabado. Embora tenha havido uma melhoria significativa a nível das liberdades, das condições de vida, da abertura do país, os autores finalizam o seu testemunho com alguma desilusão face ao país que tanto lutaram: ABarreto não se habitua a viver com muitas desigualdades ou entre muito pobres (224); ABenavente critica a perda de sentido crítico num país adormecido que necessita de democratizar a sua democracia (250); EFigueiredo revolta-se com a continuação de compadrio em ‘liberdade’ (261) e com a transformação de uma democracia em partidocracia; JMFerreira busca a autonomia dos “narcisismos concentrados” e permanece na busca de uma sociedade mais livre e igualitária; e VAlexandre afirma, com desgosto, o desaparecimento das ilusões sobre experiências socialistas.
No Portugal do século XXI, nesta era incerta e inconstante, de crise económica, mas também social e política, na era onde os imperativos tecno-económicos colonizam as esferas do mundo da vida, onde o défice democrático é cada vez maior, torna-se crucial reavaliar a influência dos intelectuais em movimentos que sustentam a liberdade e dignidade humana. Isto significa que, o intelectual tem de se desprender, utilizando as palavras de T. Adorno, do kitsch oficial, mas também não pode preconizar o papel de mero “intérprete cultural” como Z. Bauman afirma. Ora, considerando a cultura do discurso crítico e o compromisso com a transparência, com os valores cosmopolitas, com as liberdades humanas, o intelectual irá certamente estimular debates que irão animar a civitas e proporcionar uma esfera pública incubadora de uma democracia deliberativa. Desta forma, esperamos que o Grupo de Genebra, que este Grupo de intelectuais autónomos, com sua vocação individual, energia, força e persistência continue a propor à nossa Pátria – agora esvaziada de sentido crítico e esperança – novas utopias.
[i] Wiesel, E., O Tempo dos Desenraizados. Lisboa: Dom Quixote, 2003: 18.
Pilar Damião de Medeiros é desde 2007 doutorada pela Universidade de Freiburg, Alemanha. Licenciada pela Brock University, Canada e tirou o mestrado na Queen’s University, Canada e na Universidade de Karlsruhe, Alemanha. É Prof. Auxiliar Convidada desde 2009 na Universidade dos Açores. Já publicou um livro intitulado Rollenästhetik und Rollensoziologie (Wuerzburg, Koenigshausen & Neumann, 2007) – que obteve 3 recensões críticas internacionaise – publicou igualmente 9 artigos e capítulos de livro na área da Teoria crítica da cultura moderna, globalização cultural, sociologia dos intelectuais e cultura política. Tem artigos publicados em revistas como International Journal of Interdisciplinary Social Sciences, International Journal of Multidisciplinary Thought, Rhetorical Analysis eJournal, Perspectivas, Economia e Sociologia, entre outros. É membro efectivo do Núcleo de Investigação em Ciência Política e Relações Internacionais da Universidade do Minho [Coimbra e Évora] financiado pela FCT (Referência: FEDER/POCI 2010).