Arquipélago, de Joel Neto
Realidade e Ficção
Nunca como agora me pareceu tão verdadeira a (emblemática) frase do escritor Daniel de Sá: “Sair da ilha é a pior maneira de ficar nela”.
Sabemo-lo bem: não é impunemente que se nasce numa ilha, onde a terra é pouca, o mar é vasto e o sonho é enorme. Um dia Joel Neto saiu da Terceira, mas a Terceira não saiu dele. Durante vinte anos vividos em Lisboa, a ilha navegou sempre no seu íntimo, e ele carregou-a às costas transportando as memórias que a Terceira lhe deixou. E agora que a esta ilha regressou, Joel Neto busca nela a harmonia e a unidade original. Porque na ilha está o encanto da infância enquanto paraíso irremediavelmente perdido. No cosmos dos verdes anos multiplicam-se os símbolos do amor e da fidelidade, como as figuras da mãe, do pai e outros familiares, que surgem do fundo dos tempos como uma aparição de ternura no meio das ruínas da vida.
Por conseguinte, a ilha deixou em Joel Neto uma memória indelével e retroactiva, estando nela (a Terceira, em geral, e a Terra Chã, em particular) o microcosmo de referência e o epicentro do seu imaginário, isto é, o seu roteiro sentimental e afectivo. Porque, bem vistas as coisas, a ilha que se abandona nunca é a mesma ilha a que se regressa.
Foram estes os pressupostos que tive em conta quando me lancei à leitura do romance Arquipélago (3ª edição, Marcador Editora, 2015), última obra deste autor. Um livro a todos os níveis surpreendente, que me forneceu horas de apetecível leitura e convívio e que deixou em mim esse “plaisir du texte” (Roland Barthes).
Joel Neto é a afirmação inequívoca de uma verdadeira vocação de escritor. E, porque no início da sua carreira de escrita esteve ligado ao jornalismo desportivo, recorro a terminologia futebolística para dizer que, com Arquipélago, este autor entra a pés juntos na literatura portuguesa, após ter dado à estampa alguns livros inconsequentes, apesar de bem escritos: O Citroën Que Escrevia Novelas Mexicanas (contos, 2002), Terceiro Servo (romance, 2002), Todos nascemos Benfiquistas (crónicas, 2007), Banda Sonora Para um Regresso a Casa (crónicas, 2011) e Os Sítios Sem Resposta (romance, 2012)
A maturidade literária não é um dado – é um dom. Por isso apraz-me registar a fase experimentada, criativa e fecunda deste escritor que, com Arquipélago, conseguiu já a proeza de colocar a ilha Terceira no mapa literário de Portugal e da Europa.
Não há literatura sem geografia. E este livro, que capta muito bem o “espírito do lugar” e celebra os Açores, é, antes de mais, testemunho de dedicação e de amor à ilha onde Joel Neto viu a luz. E testemunho ainda do modo como, tomando por base a realidade açoriana, em geral, e terceirense, em particular, o autor soube elevar a sua narrativa à categoria de obra de arte.
O ficcionista Joel Neto traz no seu íntimo o cronista / jornalista, ou seja, um escritor empenhado em documentar uma determinada realidade humana, geográfica, histórica, social e psicológica. Mas este cronista / jornalista, uma vez transformado em narrador ficcional, deixa de obedecer exclusivamente à preocupação da autenticidade para, não traindo as coordenadas do real, se constituir instância narrativa capaz de penetrar no ser das suas personagens, de lhes descrever os anseios e as frustrações, de lhes atribuir carácter e propósito, de as escalonar segundo virtudes e defeitos, grandezas e misérias.
Escrito com desenvoltura narrativa (459 páginas), Arquipélago é um romance curiosa e cuidadosamente elaborado entre a fidelidade ao real (ilha Terceira, Lisboa) e a verosimilhança da invenção (por exemplo, a fantástica e onírica descrição de um “macabro ritual” (pág. 183) na Grota do Medo). Ou seja, este livro resulta de um processo de cruzamento entre a experiência real e a reelaboração desse mesmo real.
Mergulhando fundo no imaginário açoriano, Arquipélago dá-nos conta da condição humana, isto é, remete-nos para o destino da vida humana no teatro do mundo. A ilha Terceira apenas lhe dá décor e habitat, se bem que a verdade factual do real lá esteja toda: as festas, as tradições, os usos, os costumes, a História, a Geografia e todo o imaginário terceirense. Acima de tudo, está lá o sismo de 1980. De resto, este é um livro muito gastronómico, pois aqui come-se do bom e bebe-se do melhor na taberna do Cabrinha e pela mão de La Salete… Mas Arquipélago é muito mais do que isso, pois que, essencialmente, nos dá uma visão (dialéctica) sobre a interpenetração do Homem e do Cosmos.
De regresso à ilha após 35 anos de ausência, e confrontando-se com as suas próprias memórias e vivências, sentimentos e ressentimentos, José Artur Drumonde (que funciona como uma espécie de alter-ego de Joel Neto), académico, 44 anos de idade (pág. 157), é o protagonista da história em busca de caminhos de felicidade, catarse e redenção. Ele não sente os sismos da terra – sente os sismos da vida… Na ilha revisita lugares e redescobre pessoa (que lhe ficaram suspensos na memória), interessa-se pelo mito da Atlântida, vive vazios afectivos, faz-se transportar num velho Boca de Sapo (o Citroën que é “o carro feio mais bonito do mundo”), tem um cão (“Papillon” que funciona como uma autêntica personagem e que o salva de uma morta certa), sofre de epicondilite (dor de cotovelo), resgata a história de seu avô José Guilherme, investiga acontecimentos pretéritos e fica a saber de ódios acumulados e não resolvidos entre duas famílias rivais.
Segue-se uma vastíssima galeria de personagens que mantém entre si mútuas relações de afectividade e conflito, de surpresa e contemplação, de amor e ódio, de sonhos e angústias, perplexidades e dúvidas, medos e contradições. São personagens muito humanas, mas não menos frenéticas e tumultuosas, de grande riqueza humana (António Soares) e fundura psicológica (Luísa Bretão) que se encontram, desencontram e reencontram, o que faz deste um romance muito bem estruturado e polifónico e… com (boa) música de fundo.
Com apetecível capa, Arquipélago traduz-se numa capacidade narrativa e descritiva. Com notável poder de observação e extraordinária pormenorização, o narrador baralha os dados, quer introduzindo novos elementos no desenvolvimento da narrativa (que se desdobra e alterna em dimensões complementares), quer retardando o desfecho das situações, obrigando, deste modo, o leitor à conhecida narrativa do suspense. Digamos que esta é a parte mais “policial” e mais “thriller” deste romance (com imensa potencialidades cinematográficas), em que os elementos naturais estão lá para adensar o mistério: chuva, trovoadas, relâmpagos e muito nevoeiro… E isto porque o pretexto (pré-texto) ou o leit motiv do livro parte da descoberta, numa velha casa, de ossadas de uma criança…
Agradou-me sobremaneira este poder evocativo e esta capacidade de suspensão nesta escrita que desce fundo às penumbras empoeiradas do sótão da memória… Por outro lado, apreciei a nomeação e a carga significativa dessa nomeação, bem como a construção de diálogos, muito bem carpinteirados. E não fiquei alheio à exploração de alguns aspectos fónicos ligados à pronúncia terceirense (“Eh huóme!”), bem como a manipulação a nível lexical (“Seja pamordés”), a derivação vocabular e a ordenação rítmica aproveitando as potencialidades sintácticas (“Um home como é dado”).
É de realçar os diversos planos narrativos – 1ª e 3ª pessoas, narrador omnisciente, narrador diegético e narrador herodiegético (uma 3ª pessoa omnisciente), sendo de assinalar a sábia dosagem dos diversos e diversificados discursos. Por exemplo, o (longo) relato do velho Elias Mão-de-Ferro (a partir da pág. 328) intercala primeira pessoa com voz narrativa para que aquele não se torne fastidioso para o leitor.
Este é um livro, com princípio, meio e fim, e que se lê com infinito prazer. Ainda bem que Joel Neto não cedeu às lusas modas literárias do indizível e do desconstrutivismo. Escrevendo com os olhos da memória e contra o esquecimento, ele engrandece e dá luzimento à literatura portuguesa. Agora sim, temos escritor.
Horta, 9 de Julho de 2015
Victor Rui Dores (*)
(*) Escritor açoriano, ensaísta,professor, dramaturgo.