As comunidades de açorianos
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PIEDADE LALANDA
Porque dizemos “comunidades”, quando falamos de emigrantes açorianos?
Comunidade é uma palavra forte, um conceito estruturante das ciências sociais.
Mais forte do que a designação “sociedade”, a comunidade favorece o interconhecimento e evidencia redes de parentesco e vizinhança. De forma quase natural e espontânea, nas comunidades são frequentes as manifestações de solidariedade e de grande aproximação e um forte sentimento de pertença.
Não raras vezes, os territórios ocupados por estas comunidades são designados por bairros. O bairro dos portugueses, dos italianos ou dos chineses, onde facilmente se encontram restaurantes e outros estabelecimentos comerciais que divulgam a gastronomia e comercializam os produtos do país ou da cultura que se respira nessa zona. Não raras vezes, até o calendário festivo é vivido de forma diferente em cada uma dessas comunidades, a exemplo das festas do Espírito Santo, que unem os açorianos onde quer que estejam.
A história de cada emigrante é certamente uma narrativa feita de medos e desafios, por vezes contada de forma dramática, sofrida. Mas, quando se observa o modo como os açorianos emigrados se instalaram, desde o Brasil ao Canadá, encontramos esses percursos individuais, transformados em vivência de comunidade. Uma comunidade onde ainda se partilha a língua materna, que aproxima os que se assemelham, favorece a partilha e amortece o impacto da cultura envolvente e dominante, que tende a triturar as minorias, por via da inevitável aculturação.
Nas comunidades, criadas por açorianos, destacam-se nomes portugueses em letreiros de edifícios, recordando lugares da terra de origem dos seus proprietários. São histórias individuais que se destacam, no meio de muitas outras que se diluíram no coletivo, em lutas diárias e heroicas, que só os próprios conhecem, mas que são parte integrante e fundamental da construção da comunidade a que pertencem.
Emigrar, sendo uma decisão individual, acaba sempre por se transformar numa história de famílias, que constroem comunidades de proximidade.
Mas será que esse espírito de comunidade permanece ao fim da segunda ou da terceira geração de emigrantes? Até que ponto uma comunidade identificada em termos culturais, consegue sobreviver à pressão da sociedade envolvente, onde as palavras têm outro significado e outra força emocional? Como sobrevive uma comunidade, onde se vão criando distâncias entre os mais velhos e os mais novos? Como vencer essa força centrífuga, que dilui a identidade dos que chegam de longe, obrigando a uma aculturação mais ou menos forçada?
Muita da força das comunidades açorianas reside nas suas associações desportivas e culturais, nas igrejas onde se reza na língua mãe, nas “casas dos Açores” que mantêm viva as tradições festivas, mesmo que transformadas, reinterpretadas e em todas as formas de divulgação e promoção cultural, em rádios, jornais e outras publicações.
Nos primórdios da emigração, os que partiram buscavam riqueza, e os que acolhiam esses emigrantes, apenas valorizavam a sua força de trabalho. Aos poucos, e em grande parte porque as comunidades ganharam forma, foi aumentando o respeito pela diferença, que se traduzia nas tradições, nos costumes ou até no sotaque, e que transformou essa relação, distante, numa integração cada vez mais multicultural. Uma comunidade que soube criar empresas, fazer-se representar no sistema político, cursar nas escolas e universidades e, sobretudo, ajuda a construir um mundo mais tolerante.
Afinal os emigrantes não são todos iguais. O sucesso dos homens e das mulheres, que um dia saíram das ilhas açorianas, não está apenas na sua capacidade de adaptação, mas nas raízes que transportam, mesmo sem querer, e que os identifica, mesmo quando são apenas uma pequena comunidade, num grande país. Porque têm essa força dos laços e da comunidade, afirmam ou até reencontram os traços da identidade açoriana, que é também um modo próprio de ser, num tempo onde a diversidade cultural é cada vez mais o padrão dominante nas relações.
É por existirem comunidades, que integram e acolhem, que protegem e incentivam, que os emigrantes mantêm viva a identidade do povo que lhes serviu de berço. Por vezes essa proteção pode ser excessiva, quando trava a autonomia dos seus membros e se transforma numa fronteira que alguns temem ultrapassar, desde logo, porque não falam a língua dos outros.
Entre o acolhimento e a libertação, as comunidades acolhem e amortecem as dificuldades de integração dos emigrantes. Por isso, se as comunidades morrerem, os emigrantes correm o risco de se diluírem numa sociedade de indivíduos, onde todos são alguém, mas ninguém conta a sua história ou fala das suas raízes.
Sem a força da comunidade, a vergonha abafa as origens e dilui as identidades. Sem a proteção da comunidade, o insucesso na vida acaba por ser sinónimo de exclusão.
As comunidades de emigrantes dão sentido à multiculturalidade de um país, nelas e com elas se aprende a tolerância na diferença e se vive a partilha na diversidade. Manter os laços que as constituem é fundamental, é essencial.
Um português, açoriano, que escolhe viver em outras paragens do mundo é alguém que descobriu uma comunidade longe da sua terra, onde não esconde a sua identidade, se sente enraizado e, como açoriano ou descendente de açorianos, enfrenta esse mundo.
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Sobre a Autora Piedade Lalanda:
É natural e reside em Ponta Delgada,Ilha de São Miguel. Licenciada em Etnologia (Antropologia Cultural) na Université Paul Valery – Montpellier – França, em 1982.Doutorada em Ciências Sociais, especialidade Sociologia, em 2003, pela Universidade de Lisboa/Instituto de Ciências Sociais.
Professora Coordenadora, desde 2004, do quadro docente da Escola Superior de Enfermagem/Universidade dos Açores, instituição onde leciona desde 1984,
Atualmente ( e desde 2004) exerce o cargo de Deputada Regional na Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores.É também Deputada na Assembleia Municipal de Ponta Delgada, desde 2005.
Foi gestora do Projeto, cofinanciado pelos Fundos EFTA, “Velhos Guetos, Novas Centralidades” que decorreu em Rabo de Peixe (2006-2008).É membro do Centro de Estudos Sociais da Universidade dos Açores, desde Junho 2007 e membro dos órgãos sociais da Associação Centro de Apoio à Mulher de Ponta Delgada, desde 2003.
Em termos de publicações mais recentes:
Foi coautora nos livros “Fecundidade e contraceção” ICS, 2004 e Famílias no Portugal Contemporâneo, ICS 2005. Em 2008, publicou na obra coordenada por Rosa Simas, um artigo sobre “A mulher e o Trabalho”. Em 2010 coordenou com a Prof.ª Gilberta Rocha o estudo sobre “Violência conjugal”, publicado pelo Ministério da Administração Interna. Tem inúmeros artigos publicados em revistas e jornais no País e no exterior e é colaboradora semanal do jornal Açoriano Oriental e da Rádio Atlântida.
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Nota: A foto em preto e branco que ilustra o artigo é de autoria de Ken Smith, canadiano; doutorado em Ciências Cognitivas.
Viajante dos Açores desde o começo dos anos 80, pelos que usufrui grande afetividade, desde o seu primeiro encontro com as ilhas e as suas gentes.
Gentilmente, Ken Smith, cedeu o uso da imagem ao Blog Comunidades.