Foliões em São Jorge – início do séc. XX
Postal de António José Leite (AJL), Loja do Buraco
(…cont.)
4- Razões para a permanência
Tentar compreender as razões porque permaneceram, de forma tão arreigada, as festas do Espírito Santo nos Açores e o seu quase desaparecimento no continente só é possível no terreno das hipóteses. Os estudos que conhecemos limitam-se, na generalidade, a descrever e interpretar as características, os rituais e a simbologia da festa, mas não avançam propostas explicativas globais para responder àquela questão. As explicações para a permanência da festa incidem, essencialmente, sobre o carácter religioso do povo açoriano que, atormentado pelos frequentes tremores de terra, encontra no Espírito Santo um protector contra este tipo de catástrofes naturais.
Pensamos que a ideia é válida, mas insuficiente. Por isso, procuraremos levantar algumas hipóteses explicativas da permanência da festa nos Açores, apesar da tenacidade das proibições e censuras feitas pela Igreja.
1- De todas as festas levadas pelos povoadores, as do Espírito Santo, porque eram comuns a uma boa parte deles, permitem estabelecer um elo de união entre gentes provenientes dos lugares mais distantes de Portugal continental. São as que melhor se enquadram no espírito de solidariedade necessário para enfrentar as dificuldades sentidas nos primeiros tempos de vida no arquipélago. Pelas suas características, são as que melhor ajudam a esquecer as agruras da vida, longe da terra natal. São, por isso, festas que permitem uma espécie de catarse colectiva, comendo, bebendo e “foliando” até à exaustão, nas quais se retemperam as forças para viver o resto do ano.
2- Para a realização destas festas é necessário trigo, carne e vinho. Desde os primeiros tempos do povoamento, estes três ingredientes fundamentais existem com relativa abundância nos Açores, pelo que a realização de um bodo ou de uma “função” se pode efectuar sem grandes dificuldades. Apesar das profundas desigualdades sociais e das várias crises económicas, os níveis mínimos de subsistência estavam garantidos à generalidade da população. Deste modo, o elemento material, condição necessária para a realização da festa, é um factor importante para a permanência da mesma. Na Terceira, foi na zona mais rica e produtiva da ilha, o chamado Ramo Grande, que as festas do Espírito Santo ganharam maior projecção e sumptuosidade.
3- No século XVI, as festas do Espírito Santo começam a ser perseguidas pela Igreja. As práticas pagãs não eram aceites pela Contra-Reforma saída do Concílio de Trento e o poder eclesiástico iniciou uma ofensiva contra os “desmandos” vividos na época do Pentecostes.
Por todo o lado, terá havido resistência a essa intromissão, mas no continente, onde a Igreja se encontrava melhor organizada, era mais fácil actuar e controlar os comportamentos religiosos da população[1]. Se tivermos em conta as dificuldades económicas sentidas na generalidade do país, é de admitir que, aos poucos, as festas do Espírito Santo, nuns casos tenham desaparecido, noutros tenham sido reconvertidas ou integradas noutras festas religiosas. Nos anos 80, assistimos à passagem de uma procissão numa localidade entre Vila Nova de Poiares e Coimbra, cujo cortejo era aberto por três foliões com bandeira, tambor e opas coloridas. Os símbolos da festa do Espírito Santo permaneceram, mas foram incorporado noutras cerimónias.
Nos Açores a situação é diferente. Os primeiros povoadores foram acompanhados pelos franciscanos que se encarregaram de promover as festas do Espírito Santo e a sua acção parece não ter assumido uma função repressiva face à liberdade ou liberalidade dos costumes, própria de uma sociedade que se foi estruturando livre do controlo da hierarquia da Igreja e demais autoridades tradicionais. Esse papel moralizador coube aos jesuítas que sofreram a animosidades da população desde a sua fixação no arquipélago. Os privilégios que lhes foram concedidos para exportar cereais originaram pequenos conflitos com o povo. O apoio dado pelos jesuítas à causa de Filipe II de Espanha desencadeou um dos episódios mais violentos contra a Igreja: durante um ano os padres jesuítas estiveram enclausurados no Colégio de Angra, a pão e água, acabando por ser expulsos antes da tomada da ilha pelas forças espanholas. Os conflitos entre franciscanos e jesuítas contribuíram também para que o clero se tornasse menos actuante e eficaz junto da população. Quando, no século XVI, se pretende iniciar a alteração dos rituais tradicionais de uma festa popular, a Igreja não está em condições de poder levar a cabo a sua missão e os seus agentes são contestados pelo povo. Nos séculos posteriores, a atitude do clero açoriano no geral é permissiva porque incorporou, pela sua vivência e educação, os valores da tradição popular.
4- O período de maior perseguição a estas festas coincide com a dominação filipina, época em que chegaram a ser proibidos os bodos. Como é sabido, a ilha Terceira resistiu durante três anos a essa dominação, insurgindo-se contra os jesuítas e o Bispo, que foi obrigado a refugiar-se em S. Miguel. Quando os espanhóis vencem os terceirenses, a hierarquia da Igreja identifica-se com o invasor e a resistência à repressão sobre as festas do Espírito Santo assume, neste contexto, um conteúdo político. Deste modo, a defesa da permanência das festas reveste também a forma de uma resistência contra a dominação política e de afirmação da liberdade do povo para prosseguir com as suas tradições. Esta tensão contribuiu para o enraizamento da festa e talvez explique a razão por que está mais popularizada na ilha Terceira.
5- No século XIX, as festas do Espírito Santo continuam a evidenciar sinais de forte vitalidade, porque em quase todas as ilhas os “triatos” de madeira desmontáveis foram substituídos por pequenos edifícios de pedra e cal. No final do século, e até à primeira Guerra Mundial, quando a crise económica atinge o arquipélago de forma mais profunda, a emigração desempenha um papel importante na manutenção da festa.
Nos finais do século, a emigração açoriana dirige-se maioritariamente para a América do Norte, enquanto a do continente se encaminha para o Brasil. Devido à devoção ao Divino Espírito Santo, os emigrantes açorianos fazem-lhe frequentemente promessas em troca de graças alcançadas. Muitos deles, devido à relativa facilidade de transportes, vêm de propósito à respectiva ilha pagar a promessa, trazendo consigo dinheiro e, sobretudo, a farinha que abundava na América a preços mais baixos. Outros, por sua vez, enviavam a farinha para os familiares, o que aliviava o sacrifício material do pagamento da promessa. Este movimento de importação era tão significativo que encontrámos na imprensa, no início do século XX, uma série de protestos contra as autoridades locais que pretendiam proibir a entrada de farinhas para a festa do Espírito Santo ou exigiam o pagamento de taxas elevadas.
As autoridades foram obrigadas a ceder e a emigração açoriana da América do Norte, com o seu auxílio material, foi um factor importante que contribuiu para a permanência das festas do Espírito Santo nos Açores, no referido momento de maior crise económica.
6- Influenciada pela corrente saudosista, liderada por Teixeira de Pascoaes, que, desde 1912, procurava ressuscitar a Pátria Portuguesa, a elite açoriana procura também “reatar o fio da Tradição e do Passado”, de forma a atingir a alma das camadas populares e despertar, assim, o “impulso da Grei”[2]. A descoberta do passado e a recuperação da trad
ição assumem, a partir de então, um papel ideológico importante.
Na imprensa surgem uma série de críticas à onda de universalismo que invadia as ilhas, responsável pela perda da identidade tradicional. Para travar todas estas alterações, desencadeia-se nas décadas de 20 e 30 um movimento revivalista, talvez mais intenso do que no resto do país, que visa preservar a alma açoriana e “açorianizar os Açores”[3]. As festas do Espírito Santo que vinham perdendo algum vigor, devido à crise económica e ao encerramento da emigração depois da I Guerra Mundial, e sofrendo algumas modificações próprias de uma sociedade em mudança, vão ser atingidas por esta onda revivalista dinamizada pelos intelectuais, onde se incluíam muitos membros da Igreja. Em vários jornais e revistas, muitos deles dirigidos pelo clero, surgem artigos descrevendo as festas tradicionais e apelando-se à recuperação da participação dos foliões que nalgumas localidades tinham desaparecido. Este movimento é, assim, responsável pela revitalização da festa que vai sendo defendia como um factor de identidade dos açorianos. Esta perspectiva mantém-se nos dias de hoje, dado que a Segunda-Feira do Espírito Santo foi escolhida pela Assembleia Regional, em 1980, como o dia da Região Autónoma dos Açores.
7- A todos os factores apontados, que contribuíram para o enraizamento e permanência das festas do Espírito Santo, juntam-se evidentemente, os de ordem religiosa. Desde os tempos mais remotos que é notória uma fé muito profunda no poder do Divino Espírito Santo. Nos momentos de aflição, a Ele se recorre, nomeadamente por ocasião dos sismos ou erupções vulcânicas. Na nossa memória colectiva continuam vivas as histórias dos milagres do Espírito Santo como um apelo constante à Sua veneração. Mas, conjuntamente com essa fé, subsiste um medo terrível em relação ao Divino, que se exprime através de uma frase muito popular e muito enraizada: “com o Senhor Espírito Santo não se brinca”.
Se a maioria dos açorianos acredita nos benefícios da intervenção do Divino também acredita nas vinganças por Ele executadas. Exemplifiquemos: uma pessoa prometeu ao Divino Espírito Santo uma determinada galinha em troca de um benefício alcançado. No dia do pagamento da promessa, dirige-se à capoeira e, em vez da galinha prometida, porque era a mais gorda, troca-a por outra. Castigo fatal: nesse dia, ou nos seguintes, a referida galinha morreu. Esta é, apenas uma das muitas histórias transmitidas de geração em geração, que funcionam como uma coação psicológica, impondo respeito e medo. A eficácia destas histórias e medos tem sido muito forte no seio de uma sociedade, até há bem pouco tempo, essencialmente rural, tradicional e supersticiosa. Este estádio psicológico tem sido responsável pela permanência da festa ao longo dos anos, levando as pessoas a participarem e a organizarem a mesma com receio de possíveis castigos do Divino.
5- Causas da decadência
Os factores apontados contribuíram para que as festas do Espírito Santo se enraizassem e permanecessem nos Açores com maior intensidade que no resto do país. A repressão que a Igreja pretendeu exercer tornou-se ineficaz perante a resistência do povo e a complacência de uma boa parte do clero, imbuído das mesmas crenças populares. As alterações que se registaram ao longo dos séculos são mais uma consequência da evolução da própria sociedade do que um resultado directo das proibições da Igreja.
Nos finais do século XIX e no início do século XX, altura em que a civilização burguesa vai conquistando os espaços urbanos e penetrando mais lentamente nos meios rurais, a alteração dos costumes também atinge as festas do Espírito Santo. Em muitas freguesias os foliões foram desaparecendo e os excessos desencadeados com a sua acção no interior do templo sucumbiram por si. As filarmónicas passaram a acompanhar as coroações, dando-lhe o tom festivo, mas sem interferir nas cerimónias religiosas. Na casa dos imperadores continuaram a fazer-se bailes e outros jogos profanos, mas à medida que a sociedade criou outros espaços de convívio e diversão mais frequentes, o baile deixou de ser o grande motivo de atracção das noites em que se rezava o Terço. As festas do Espírito Santo foram sendo aos poucos, pela dinâmica da própria sociedade, depuradas de várias “atitudes de desrespeito” para com o sagrado, como resultado da própria evolução dos costumes e das práticas sociais.
Os anos sessenta do nosso século correspondem ao início do grande ponto de viragem da sociedade açoriana. Nesta década assiste-se à desarticulação das formas de solidariedade comunitárias que ainda subsistiam entre os camponeses. A partir dos anos setenta, modificou-se profundamente a estrutura da sociedade tradicional açoriana, com a diminuição da população activa ligada à agricultura e o crescimento acentuado do sector de serviços. Nos meios rurais, com a predominância da actividade pecuária, instalou-se o individualismo e muitas formas de solidariedade foram desaparecendo nestes últimos anos. Ao mesmo tempo, cresceram os índices de escolaridade e alfabetização em todo o arquipélago e os valores e padrões culturais da juventude açoriana, com uma maior abertura ao exterior por influência da televisão, têm sofrido uma forte aculturação.
As festas do Espírito Santo pelo seu forte enraizamento têm permanecido, mas a pujança e o entusiasmo vividos até aos anos sessenta sofreram um forte abalo. As “folias” com os bezerros enfeitados, música e cantoria, realizadas nas vésperas da “função”, foram desaparecendo. A festa levada a efeito na 5ª feira de bodo, dia em que os carros de bois se engalanavam para ir buscar o vinho, também sucumbiu. Nos dias de hoje, o vinho é transportado em camionetas sem qualquer carácter festivo. Na maior parte das freguesias já não se realiza o bodo e as promessas individuais já não preenchem oito Domingos da quadra do Pentecostes. As elevadas despesas inerentes à realização de um “Função” e a mudança da mentalidade das pessoas, que já não estão dispostas a suportar sacrifícios e canseiras, têm contribuído para alterar a essência da festa do Espírito Santo. Muitas pessoas pagam a sua promessa individual, recebendo, apenas, o Espírito Santo em casa durante uma semana, realizam a coroação, mas já não oferecem o banquete nem as esmolas aos pobres. A atitude de repartir com os outros a riqueza vai sendo cada vez menos assumida. De uma forma nítida, os sentimentos individualistas vão ganhando terreno, transferindo-se para o Estado a responsabilidade da solidariedade para com os outros. A subida do nível de vida e as exigências de bem-estar já não se compadecem com as tradicionais formas de afirmação. Por outro lado, as festas do Espírito Santo vão sofrendo a concorrência de outras festas mais dinâmicas, mais emotivas e mais espectaculares em que cada um, individualmente ou em grupo, procura outras formas de exibição ou separação do outro. E por isso a rivalidade cada vez mais exacerbadas entre as festas levadas a cabo em cada freguesia ou cidades do arquipélago.
Apesar de todas estas alterações, em que são evidentes os sinais de decadência em relação a um passado muito recente, vão surgindo novos dados que revelam uma vontade de continuar com a festa. Há poucos anos, na freguesia de Vila Nova, ilha Terceira, o Centro de Convívio da terceira idade da freguesia assumiu, como instituição, realizar uma “função” para preencher uma vaga em aberto num dos oito Domingos destinados ao culto. Por outro lado, também na ilha Terceira, neste ano, um grupo de mulheres decidiu organizar a festa do Império do Canadá de Belém. É muito provável que o exemplo prolifere e, no futuro, o monopólio até aqui exercido pelos homens, possas ser compartilhado com as mulheres na organização da festa.
Independentemente do que possa vir a acontecer no futuro, parece evidente que, neste final de século, estamos numa fase de transição, com importantes alterações de forma e conteúdo nas tradicionais festas do Espírito Santo no Açores
Carlos Enes
[1] Ver Maria Fernanda Enes, obra citada.
[2] Revista Os Açores, nº 2, Agosto, 1922.
[3] Ver “A construção da unidade e identidade regional” in Luís da Silva Ribeiro, Obras IV, Escritos político-administrativos, estudo introdutório e organização de Carlos Enes, IHIT/SREC, Angra DO Heroísmo, 1996.
CARLOS ENES nasceu na Vila Nova, Ilha Terceira. Professor de História no Ensino Secundário, desde 1978, exerceu também funções docentes na Universidade Eduardo Mondlane (1981-84), Maputo, e na Universidade Aberta (1996-2003), Lisboa. Mestre em História Contemporânea (1993), pela Universidade Nova de Lisboa, tem-se dedicado à investigação da história açoriana, com vários livros e artigos publicados, colaboração abundante na Enciclopédia Açoriana e realização de palestras em diversos eventos. É autor do romance Terra do Bravo (Editado pelo Instituto Açoriano de Cultura, Angra do Heroísmo, Terceira, Açores, 2005) -edição esgotada-