As horas
Ao fim de três anos e meio, adaptei-me a quase tudo. Mas não aos horários – nunca aos horários.Naturalmente, já não se janta ao meio-dia nem se ceia às seis da tarde, aqui como no resto do país. Mas o almoço ainda é impreterivelmente às 12.00. O período da tarde começa às 13.00, às 17.30 é noitinha e só numa noite de loucura boémia, assim numa sexta-feira de Primavera, o jantar começa depois das 19.00 (talvez às 19.30).
19.30 é quase hora de almoço para nós. E até acordamos cedo. De maneira que, quando alguém telefona na quinta-feira para jantarmos juntos na sexta, eu começo por procurar margem negocial:
– Nove horas está bem para vós?
Do outro lado, o interlocutor fica logo em tremores, aflito com os diabetes. Só então desfaço o equívoco:
– Estou no gozo. Oito e meia aparecemos!
E mesmo assim é apertado para nós, porque ambos continuamos a trabalhar para Lisboa e nem sempre podemos fazê-lo a outro ritmo que não o de Lisboa.
No Verão passado, chegou a ser divertido. Uma tia querida convidou a família toda para um jantar a meio da semana, já não me lembro a que pretexto. Disse:
– Pelas sete e tal/oito, pode ser?
Fiquei grato pelo intervalo. Se fosse em Lisboa, aparecia às oito e meia. Face às circunstâncias, ordenei a mim próprio: às oito não falhas!
Eram sete e dez (não exagero: sete e dez) quando ligou a minha mãe.
– Então, não vens?
Já estava sentada à mesa, à espera. Eu arregalei os olhos:
– Mas a tia disse-me sete e tal/oito…
E ela:
– Então? Já são sete e tal.
Nesse dia, tomei uma decisão: aceitar o papel de maluquinho. Na verdade, aqui há vida. Distingue-nos sobretudo uma coisa: para muitos, o trabalho é para fazer e tirar do caminho, de modo a começar-se a viver; para mim, não há vida tão exultante e feliz como o trabalho ele próprio.
Nenhum está mais certo do que o outro.
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A Crônica "As Horas" foi publicada na edição do DN – Diário de Notícias (de Lisboa), Opinião de 4/12.
Reproduzida no Comunidades com a devida autorização do jornalista e escritor Joel Neto, açoriano de Terra Chã, Ilha Terceira.
Uma das grandes vozes da literatura contemporânea de Portugal. Romancista, cronista, jornalista. Tudo que escreve o faz na medida certa e com grande talento.
Seu mais recente romance "Arquiélago" em poucos meses vendeu 5 edições de grande sucesso.