As ilhas e a sua mítica
Vamberto Freitas
Se os Açores foram as “ilhas dos amores” onde correram atrás de ninfas os marinheiros de Vasco da Gama no seu triunfal regresso da Índia e assim cantados por Camões, pouco interessa à verdade das coisas. Será a mítica dessa possibilidade imaginária que mais conta na nossa visão do passado e do nosso lugar na História, que tanto é feita de “factos” como de “interpretação” e, sim, imaginação e fantasia pura. A origem dos arquipélagos está mais ou menos entendida cientificamente até à sua idade e circunstâncias cósmicas na sua formação, o que não deixará alguns de, uma vez mais e sempre, imaginar a sua primitiva e grandiosa civilização-mãe, que no nosso caso origina com Platão e dá pelo nome misterioso de Atlântida, com inúmeros livros especulativos a serem publicados de quando em quando. Cada povo tem a sua “história” lendária na reinvenção das suas próprias origens, debaixo de fogo ou de um ceptro de fadas — a narrativa lendária da sua grandeza ou tragédia nunca deixa de assombrar as explicações racionais, estudadas e mais ou menos documentadas, essas tornando-se a narrativa oficializada do estado e das classes dominantes. Nada disto, ou raramente isto, quer dizer, as narrativas sem mistério ou poesia, move ou comove os escritores das ilhas do Atlântico Norte em quatro arquipélagos desde sempre irmãos: Açores, Madeira, Cabo Verde e Canárias, a Macaronésia, cujo significado Onésimo Teotónio Almeida e Juan Carlos de Sancho nos relembram no volume aqui em foco – “ilhas alegres e afortunadas”, vindo da origem do termo grego makárôn nêsoi. Não vale a pena vivermos em êxtase de povos auto-convencidos, só que todas as narrativas de um povo ou povos são constituídas também pela imaginação destravada e expansiva, pelo desejo de redenção ante a outra face da história, geralmente de sofrimento, fome, insegurança e injustiça. A nossa melhor literatura moderna bem tem dado conta desse outro lado da nossa vivência e destino em rochedos isolados a meio mar entre dois grandes continentes que se só lembram de nós quando os seus próprios interesses estão em jogo, pelo menos até a um passado bem recente. Eis, pois, as ilhas vistas aqui de dentro para dentro, de fora para dentro, de ilha para ilha, numa viagem à descoberta das suas literaturas, e ainda abordagens históricas, sociológicas e doutras áreas académicas, as ilhas vistas também por artistas plásticos, arquitectos e cineastas. As ilhas sempre foram como que microcosmos do restante mundo em volta, as suas sociedades simultaneamente metonímicas de algo mais vasto e longe enquanto preservam e desenvolvem sempre a sua especificidade em todos os campos de acção humana, tornam-se realidades originais pela sua hibridez humana e cultural, a mestiçagem perfeita, como aliás nos reafirma esta singular colectânea de textos, de colonos vindos das mais díspares geografias e tradições, da mistura de povos oriundos de todas as partes do mesmo país, por mais pequeno que seja, tal como no caso lusitano.
Las Islas de los Secretos/As Ilhas dos Segredos é uma colectânea bilingue (Espanhol e Português) de ensaios organizada pelo artista e intelectual Juan Carlos de Sancho e publicada nas Canárias, alguns dos escritos que foram lidos ao longo dos anos, precisamente de 1997 a 2004, nos simpósios do Funchal que eram organizados pela escritora Maria Aurora Carvalho Homem, professora e então Directora do Departamento de Cultura da Câmara Municipal do Funchal, que patrocinou exclusivamente e na totalidade esses alargados encontros na sua ilha, convidando outros ilhéus da Macaronésia, de outras ilhas do mundo, e quem em universidades continentais ou quem fora delas na sua vida literária e artística se debruçava sobre estas temáticas, quer em Portugal quer no estrangeiro. Outras visões da vida em ilha ou de identidades nelas originadas foram dadas através das literaturas imigrantes ou étnicas em vários continentes, incluindo as das gerações já nascidas lá fora, mas cujo passado ancestral é-lhes um chamamento constante. Alguns dos lemas indicam de imediato as temáticas desvendadas numa altura em que a cultura era ainda um valor auto-justificado e essencial à cidadania de sociedades conscientes de si próprias, do seu lugar num mundo em mudança constante e turbulenta: “As Ilhas e a Mitologia”, “Cultura de Periferias, Insularidade”, “Permanência e Errância” “Caminhos do Mar”, “Escritas do Rio Atlântico” “Escritores e Cidades”, “Leituras do Olhar” “Arquipélagos do Desejo” e “Arquitecturas do Afecto e da Memória”. Maria Aurora, oriunda do continente mas durante anos residente na Madeira foi quem, antes de todos, topou a inevitabilidade de juntar os que entre umas ilhas e outras tinham tudo em comum na história, mas nunca uma convivência a este nível intelectual e artístico. Teria de ser ela, que não carregava em si os mais absurdos complexos de inferioridade de muitos ilhéus, a levar à cena estas abordagens académicas e criativas em volta, uma vez mais, da história e mítica das ilhas atlânticas. Quando faleceu, faleceu com ela o projecto madeirense, tal como entre nós haveriam de acabar com os Encontros de Escritores Açorianos dos anos 80-90.
Estes ensaios em As Ilhas dos Segredos, escolhidos pela diversidade de temas abordados ou discutidos, comemoram toda uma época em que algo mais do que o PIB interessava à caminhada destes povos arquipelágicos, dentro e fora da União Europeia, irmanados com muitos outros mais a sul ou no outro lado do mar. Em todas as suas literaturas está o que o grande intelectual da ilha caribenha de Martinique, Édouard Glissant, chamou de Poética da Relação, ou ainda o “pensamento arquipélago”: a capacidade dos povos ilhéus de absorver e desfrutar de todas as outras culturas nos seus contactos através da história, a sua rica hibridez no saber e na vivência, a sua capacidade de desterritorializar o mapa no mais claro gesto do que outros chamam, sem muita razão ou credenciais para além da sua própria retórica, de universalismo. Glissant, totalmente inserido numa tradição de língua francesa, doutorado em Paris, quedar-se-ia perplexo se ouvisse ou lesse alguns açorianos quando da sua literatura falavam ou escreviam, quando num tempo não muito longínquo até a expressão literatura açoriana era quase proibida ou provocava ou espécie de apoplexia intelectual entre alguns que nunca teriam vivido fora de uma freguesia ou cidade do mesmo tamanho por mais de uma semana ou meses. A legitimação das culturas arquipelágicas não tem nada a ver com a separação de, ou rejeição de outros dentro e fora do mesmo país. Pelo contrário, é na definição de posturas abertas e flexíveis que os ilhéus sobrevivem e contribuem para a riqueza cultural e artística do mundo. A nova geração de escritores luso-descendentes na América do Norte, por exemplo, outra coisa não demonstra senão essa disponibilidade para o diálogo descomplexado, para a coexistência pacífica de identidades em perpétua revisão. Creio que vem aí uma nova geração de ilhéus que nunca mais vai aceitar qualquer forma ou tentativa cultural hegemónica seja de quem for. O diálogo azedado nestes últimos anos entre ilhas e “metrópoles”, estou em crer, é já um claro sintoma da nossas libertação.
“Seguindo – escreve Juan Carlos de Sancho no prólogo a As Ilhas dos Segredos, e apelando à leitura partilhada deste livro – o sonho multicultural de Glissant, convidamos-vos a desbravar e a decifrar o mundo macaronésico enquanto multi-relação, desfrutando dos lugares comuns que nos oferecem as diferentes culturas que habitam as ilhas. O mundo inteiro entrou num processo de crioulização, na emergência de identidades abertas, flexíveis, apaziguadas com o murmúrio de to
das as línguas do mundo”.
Tive o prazer, juntamente com alguns outros açorianos, de participar neste projecto madeirense. Foi em anos ainda muito recentes, sabemos, mas o espírito desse tempo e desse lugar, tal como aqui nos Açores, mudou radicalmente. Até que Godot chegue novamente, quem sabe, menos silencioso, mais actuante, mais consciente de que a dignificação de uma terra e de um povo está em nós, só de nós depende. •
Las Islas de los Secretos/As Ilhas
dos Segredos (Juan Carlos de Sancho, ed.), Las Palmas, Gran Canária, Colección Textos Universitarios n.33, 2011.
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Nota:Publicado originalmente no jornal Açoriano Oriental de Ponta Delgada em 18/11/2013, reproduzido com a devida autorização do Autor.