As linguagens da pós-modernidade e identidades
Vamberto Freitas
Releio algumas das páginas sublinhadas e anotadas do meu exemplar deste grande romance Do fundo do poço se vê a lua, do brasileiro Joca Reiners Terron, e espanto-me uma vez mais com as suas linguagens poderosas, claras, indo como velozes setas ao centro do alvo, a metáfora assim tornada cristalina, também pelo seu constante recurso aos referenciais históricos, culturais e artísticos das mais recentes décadas num mundo ora em mutação violenta ora lambendo as feridas que a pós-modernidade nos trouxe – a extrema fragmentação societal em confronto com a persistente memória não do que fomos, mas do que pensamos deveríamos ter sido, ou de todos os ensinamentos, sagrados ou profanos, que nos tentaram impor. Se falo aqui em “nós” enquanto tento analisar uma peça de ficção contemporânea é porque não entendo a convivência com a arte literária sem estes momentos de aconchego, ou então olhando esse espelho que me devolve a imagem que não gostaria de ver, ou ainda que me lembra que do outro lado estará uma outra humanidade que nunca vivi ou que nunca me foi o labirinto pessoal. Se a literatura brasileira nos é conhecida primeiro pelo drama histórico da ruralidade do país imenso, do sangue identitário derramado na sua geografia sulista, da violência económica e logo política de um Nordeste com fome e sede, sobretudo de justiça, ou ainda as geografias outrora fontes da fabulosa riqueza ao centro e cuja decadência brutal seria tornada imemorial por uma obra prima como Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, a literatura citadina a partir de meados dos anos 60 é igualmente a de um poder temático de ampla abrangência na nossa língua, transfigurando o indivíduo e a sociedade nas suas buscas incessantes por uma identidade que se redefina contra a própria história, que liberte os seus personagens principais da sua própria ancestralidade, o ser humano aqui como em toda a parte à procura da felicidade, ou pelo menos de uma existência harmoniosa com o seu mais profundo ser. O romance de Joca Reiners Terron está tão bem alicerçado nas suas ricas linguagens trágico-cómicas que o leitor depressa esquece o seu tema, passando a rever-se nos mais improváveis personagens que alguma vez povoaram a literatura na nossa língua. Será como um quadro do expressionismo nova-iorquino de Jackson Pollock – o brilho das suas cores e a perfeição das suas formas improvisadas e caóticas bastam para prender o nosso olhar e mover a nossa imaginação. O que encontraremos depois, por mais inesperado que nos seja, clarifica e confirma o que da arte esperamos, a comunhão da beleza e da verdade na representação de quem somos ou pensamos ser. Que este é ainda um romance que tem no seu centro temático a transsexualidade do seu protagonista, o desencontro que parece irreparável de irmãos gémeos vindos de uma família decepada pela morte e pela solidão numa metrópole como São Paulo, em nada nos afastará de um jogo de espelhos que quanto mais distorcidos nos parecem mais verdadeiros se tornam em tudo o que se refere à luta de um ser humano pela sua dignidade e simples sobrevivência no labirinto a que os deuses o condenaram. Esqueçam alguma classificação crítica deste romance como sendo pulp fiction – não é este o primeiro autor ou artista brasileiro que ultrapassa de longe os seus supostos mestres norte-americanos. Esqueçam ainda que a ficção que nos parece vinda do antigo desespero burguês alimentado pelo narcisismo do protagonista não vai além disso. Como num Raymond Carver, a sociedade não se vê, mas está lá, dominante, desonesta, opressora.
Há imagens e metáforas recorrentes em Do fundo do poço se vê a lua – “labirinto de espelhos”, mar, baleia, tudo o que universalmente nos pode aterrorizar, biblicamente engolir na escuridão, mas também o confronto que nos liberta. Esta é a história de Wilson e Williams, dois irmãos paulistas que são criados e educados pelo pai e um amigo íntimo da casa, ambos actores menores num pequeno teatro, eventualmente destruído por uma tempestade de chuva e fogo. Wilson cedo descobre que o seu corpo não condiz com a sua biologia interior, instintos e desejos o contrário do irmão macho e violento. A sua existência isolada no carinho de um apartamento sem uma mãe que faleceu e outrora foi perseguida pela Ditadura militar leva-os a confundir o mundo em sua volta com a irrealidade da arte, com cinema hollywoodesco e a teatralização mais ou menos erudita e constante do pai. No décimo oitavo aniversário dos gémeos, a natureza do mundo e do seu ser coloca-os nos caminhos do destino. Wilson, após uma operação de mudança de sexo mais ou menos clandestina, vai até ao Egipto em busca do mundo que foi o berço da sua obsessão – Cleópatra tal como teria sido encarnada por Elizabeth Taylor e o seu par Marco António, na pessoa de Richard Burton. Está definida, a todos os níveis, a confusão entre realidade e ficção, um mundo de actores que confundem a tragédia histórica com o seu próprio desterro, seja na terra natal ou num palco tão distante e estranho como a cidade do Cairo nos anos 80, simplesmente uma outra capital muito antiga a braços com as mudanças radicais da nossa época, um mundo ainda menos reconhecível do que aquele do cinema. “Sem passado nem futuro, – diz o narrador a dada altura – a mim não restava nada a não ser aproveitar o dia”. Aliás, toda a existência de Wilson se confunde com a de um mundo de fantasia, com o que a sua imaginação lhe cria e recria. Do fundo do poço se vê a lua é pura meta-literatura – a dinâmica de um acto de criação pretendendo ser a narrativa plausível que de facto é, mergulhando em todo um mundo de cultura e história, levando o seu leitor a absorvê-la como mais uma representação artística em que o realismo e simbolismo das suas palavras se conjugam perfeitamente para nos devolver outro espelho do nosso próprio ser, nós e o outro um só, ou então a aceitação apaziguadora das nossas diferenças, a ficção como esse labirinto de espelhos em que todos nos revemos, ou melhor entendemos o que não somos.
“Na época em que vivia com os travestis – diz Wilson finalmente ao que vem e tenta explicar a sua existência já no Cairo, agora dançarina de ventre estrangeira nos mais sujos e perigosos subterrâneos humanos, a vida por um fio – eu não podia compreender o apego que desenvolvera em relação àquele recorte amarelado de jornal no meio das páginas da biografia de Liz Taylor que havia sido encontrada comigo. Eu era capaz de lê-lo todos os dias, mesmo sem reconhecer os nomes citados ou adivinhá-los por trás das iniciais. Seguindo aquelas linhas, imaginava que obteria respostas sobre quem eu poderia ter sido. Por contraditório que possa parecer, aquelas notícias de um passado morto me enchiam de esperança”.
Uma das qualidades memoráveis deste romance é a profundeza com que o narrador nos define e insinua a vida interior de cada personagem significante, desde São Paulo ao Cairo, o que em língua inglesa se denomina bringing out character. Não são elas que estão ao serviço de ideias, algo mais comum do que seria desejável na nossa própria literatura, mas sim as ideias que delas sobressaem e seguram a atenção concentrada do leitor, para além da trama aqui urdida à maneira de uma outra espécie de policial ou romance de acção. Cada movimento gera uma uma consequência, cada escolha um fim. De resto, e como já referi anteriormente, tanto uma sociedade como a outra, a brasileira e a egípcia, vão sendo igualmente caracterizadas em meias palavras, descrições, lembranças do passado. Na capital financeira e cultural do Brasil vamos adivinhando a azáfama de rua e bastidores por uma palavra ou outra dos personagens mais distintos. No outro continente, numa sociedade entre o islamismo e a vontade da liberdade percorremos as ruas antigas e decadentes, as luzes a brilhar em paredes quase a ruir enquanto os seus habitantes olham os estrangeiros ora com desconfiança ora indiferentemente. Nunca vemos uma sociedade inteiramente fundamentalista ou inteiramente à vontade com o outro no seu meio. A humanidade a saque, sempre, por entre a hipocrisia da modernidade ocidental ou magoada ainda pela memória da grandeza milenária dos faraós e da Esfinge aos seus portões. Não há sexo explícito aqui, nem violência gratuita à moda da ficção parodiante americana. A sensualidade insinuada fica pelas meias palavras, pelos chamamentos a outras manifestações artísticas recordadas mais pela fama e beleza das actrizes do que pelas suas representações em contextos diferentes, na vida vivida ou na vida ficcionada pelos tablóides da cada época. A leitura de Do fundo do poço se vê a lua, todo ele escrito nessa linguagem tão escorreita como carregada de simbolismo e significados múltiplos, progride como que num dos muitos filmes aqui mencionados, ou numa das peças em palco descritas ou recontadas por Wilson. Eis aqui o duplo em cada um de nós, numa batalha psicológica nada menos ameaçadora do que a negação da nossa própria natureza ou vontade imaginária.
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Joca Reiners Terron, Do fundo do poço se vê a lua, Lisboa, Teorema/Leya, 2015. Publicado na coluna “BorderCrossings” do Açoriano Oriental de 08 de Abril de 2016.Reproduzida com a devida autorização do autor.