O velório de padre Divino foi a maior festa daquele seminário. Não me entendam mal. Ninguém estava comemorando a sua morte. Ao contrário, os meninos compareceram quase todos chorosos. Mas o padre-reitor, que aquele dia substituiu padre Divino, conduzindo-nos ao dormitório, recomendou-nos que vestíssemos nossos ternos de gala e descêssemos para o grande salão.
O bispo celebrou missa solene inesquecível, ajudado por vários padres, uns da cúria, outros do próprio seminário. Cantos melodiosos reboaram pelo recinto, fazendo vibrar os vitrais das janelas. Foi a única noite clara em todos os anos que ali vivemos. Na madrugada do dia seguinte, alternando turmas, fizemos as abluções matinais costumeiras, ainda que levemente alteradas, e voltamos à capela para as últimas encomendações da alma de padre Divino.
O enterro saiu da capela e tomou o caminho das arvorezinhas. Uma carroça preta e verde, puxada por dois cavalos, um preto e um branco, levava o caixão. Todos seguíamos a pé. O cemitério ficava a três mil metros dali.
Na volta, cansados como nunca em toda a nossa vida de meninos, fomos conduzidos ao dormitório tão logo chegamos. Coube ao padre-reitor suprimir a ordem do dia. Mandou apenas que antes de deitarmos rezássemos uma ave-maria pela alma de padre Divino, pois assim encurtaríamos um pouco as chamas do purgatório que àquela hora deveriam estar extinguindo seus pecados veniais. “Veniais”, fez questão de frisar. “Padre Divino era um santo homem!”
Seguiram-se dias cheios de comentários. E agora que a memória já me trai um pouco, não sei definir com clareza em que momento passou a circular entre nós a idéia de que padre Divino tinha alguns segredos, um dos quais era um livro inédito que escrevera sobre a vida de Teresa d´Ávila.
(…)
Enquanto eles não vinham, Vílson ia lendo para nós o texto inédito. Não para todos. Apenas para Loyola, Kiko, Andrezinho, Tomás e eu. Era nos eucaliptos que nos escondíamos à hora do recreio. Os outros, que se entretinham a jogar bola, faziam má idéia de nós. “Acho que o Vílson descobriu a versão integral do Elixir do Pajé, e agora todas as tardes lê uns pedaços para a sua turma”, disse um os gêmeos. A gente nunca podia afirmar com clareza qual dos dois era um, qual era o outro.
“Hoje vou ler apenas o primeiro capítulo”, disse Vílson. “Prestem atenção e não me interrompam. Eu nem posso demorar muito. Vai que o padre-reitor descobre e vem ver o que eu estou lendo. Serei obrigado a devolver sem terminar.”
“Está bom”, concordamos todos nós. E Vílson começou a ler. Parecia que padre Divino não tinha morrido, porque sua voz estava ali nas palavras de Vílson, falando por ele. Mas ao mesmo tempo era outro o padre que falava, quase irreconhecível.
“A história se passa na Espanha”, disse Vílson. “Na cidade de Ávila.”
Naqueles dias e nos que se seguiram, Vílson leu para nosso pequeno grupo o original que padre Divino deixara inédito e que para nós passou a ser conhecido como o manuscrito do morto. Enfeixados numa cartolina creme, estavam os originais do livro que segue. Na capa, ao alto, estava escrito em vermelho: Pedras com febre. No meio da cartolina, em letras pretas e miudinhas: romance para teatro. E logo abaixo o nome do autor: Padre Divino Mann.
_________________________________________________
Sobre o Autor Deonísio Silva:
O catarinense Deoníso Silva é Doutor em Literatura Brasileira (USP).Professor, Pró Reitor de Cultura e Diretor do Instituto da Palavra,
da Universidade Estácio de Sá – RJ.Escritor e cientista de palavras.No dizer do jornalista Augusto Nunes, colunista da revista VEJA é “um dos mais notáveis domadores de palavras do Brasil”. É muito mais do que isso. Deonísio é um cientista apaixonado por palavras. Olha-as com a lupa da raridade, acarinha na simplicidade do desabrochar, ironiza,intisica na sutileza dos seus significados e usos. Brinca,satiriza,provoca, descobre,ensina. Aprendemos!
Deonísio,se dedica ao cultivo das palavras. Há mais de quinze anos assina a coluna “Etmologia” da revista CARAS (ed.Abril) Com mais de 200 milhões de exemplares vendidos neste período.Estas colunas na sua íntegra estão reunidas no livro “De onde vêm as palavras”e já vai na sua 16ª edição. Um bestseller das palavras, trazendo as origens e curiosidades da língua portuguesa.
Deonísio Silva é um menestrel das Letras com mais de trinta livros publicados. Suas crônicas e artigos são, semanalmente,publicadas nos mais importantes jornais do País e no Observatório de Imprensa. Da sua produção literária destaca-se: Exposição de Motivos (1976); Cenas Indecorosas (1978); A Mesa dos Inocentes (1978); A Mulher Silenciosa (1981); Livrai-me das Tentações (1984); A Cidade dos Padres (1986); Orelhas de Aluguel (1987); Avante, Soldados: para trás (1992); O Assassinato do Presidente (1994); Ao Entardecer ele Abraçava as Árvores (1995); Teresa (1997); Os Guerreiros do Campo (2000).