As ‘sopas’ do Espírito Santo
Anselmo Borges
Várias vezes Natália Correia me desafiou para as festas do Divino Espírito Santo, nos Açores – ela era espírito-santista. Então, não foi possível. Mas este ano aconteceu.
É capaz de ser a festa mais humanista do mundo. Ah!, aquela coisa dos “impérios”! Chegue quem chegar, senta-se e come e bebe fartamente, sem que alguém lhe pergunte quem é, donde é, o que faz. De graça. No “império” a que me acolhi, lá estava o espírito: “A hora de repartir/Que a gente tanto gosta./Pão, carne, massa e vinho/Temos sempre a mesa posta.” Ali, foram servidas mais de 600 “sopas” (um ensopado de carne excelente).
Se formos à procura da origem destas festas, encontraremos um monge célebre do século XII, Joaquim de Fiore, que deu o joaquimismo. Segundo ele, a História do mundo está dividida em três Idades: a Idade do Pai ou da Lei, que é a idade da servidão e do medo; a Idade do Filho, que é a idade da submissão filial; a Idade do Espírito Santo, na qual se ia entrar, e que é a idade do Amor, da Liberdade e da Fraternidade.
Houve sempre, ao longo da história da Igreja, um conflito entre os que acentuam o lado visível, institucional, hierárquico, e os que sobrepõem à Igreja visível uma Igreja espiritual, carismática, fraterna. O joaquimismo constituía uma mensagem revolucionária de contestação de uma Igreja pecaminosamente mundana; os franciscanos “espirituais” – fraticelli (irmãozinhos) -, desgostados com os Papas que abafavam o Espírito, aderiram à inspiração carismática, espírito-santista do joaquimismo.
Em 1282, D. Dinis casa com D. Isabel de Aragão, a futura Rainha Santa. O casamento realizou-se em Trancoso, que, significativamente, havia de ser a terra do sapateiro Bandarra, profeta do Quinto Império, tão querido do Padre António Vieira e Fernando Pessoa. Toda a família da nova rainha de Portugal era partidária dos frades espirituais, e a própria rainha possuía um conceito franciscano da vida: simplicidade, desapego dos bens terrenos, amor aos pobres e fracos. Santa Isabel protegia os franciscanos, e foi por seu intermédio que entrou um culto especial ao Espírito Santo. Fundaram-se confrarias do Espírito Santo, irmandades de socorro mútuo, e instauraram-se as Festas do Império do Espírito Santo, nas quais se celebrava o Pentecostes, comemorando a descida do Espírito Santo sobre os Apóstolos.
A principal cerimónia desse culto, durante a semana do Pentecostes, realizada por um franciscano, constava da coroação com três coroas, uma imperial e duas reais, do Imperador e dois Reis, geralmente na pessoa de uma criança e dois homens do povo pertencentes à Confraria do Espírito Santo. O Imperador, um menino, símbolo da humanidade renovada, religada às verdades básicas da pobreza evangélica e do amor ao próximo, empunhava o ceptro com que, tocando na fronte, se significava a bênção do Espírito Santo, e, depois de ter recebido as homenagens da população e das autoridades civis, militares e religiosas “fora” da igreja, procedia à libertação dos presos e à distribuição do pão, não como esmola, mas como preâmbulo da instauração na Terra da era da fraternidade profetizada.
Esta Festa dos Imperadores generalizou-se e encontramo-la em muitos pontos do País, mas de modo especial em Tomar e a sua Festa dos Tabuleiros ou do Divino Espírito Santo. Aqui, no fim da procissão, há a distribuição do bodo aos pobres.
Mas as festas do Divino Espírito Santo enraizaram sobretudo nos Açores e, por causa da emigração, em vários núcleos portugueses dos Estados Unidos e do Canadá. Nos Açores, temos as chamadas Igrejas “paralelas”, de que ainda hoje é possível encontrar vestígios. No quadro das celebrações religiosas, continuam com lugar destacado as Festas do Divino Espírito Santo e do “Império”, procedendo-se à coroação de uma criança, que segue na procissão com o ceptro, sendo igualmente de destacar as referidas “sopas”. A soçobrar na crise, é bom lembrar estas Festas da Fraternidade universal. A utopia tem duas funções essenciais: criticar o presente e obrigar a transformá-lo. Outro mundo é possível.
Anselmo Borges, teólogo e filósofo, é docente de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Autor de várias obras, na área da sua formação académica.
P.S. Uma versão deste texto foi editada no DN de 26 de Junho de 2011. Pelo seu interesse temático, agradecemos a disponibilidade ao Professor Anselmo Borges.