As vidas de A Divina Miséria, de João de Melo
Rebeca Hernández
Na “Nota a Fechar” incluída na edição de 2009 da novela A Divina Miséria , João de Melo indica as diferentes versões deste texto pensado como “uma falsa partida para um romance que nunca existiu mas em tempos projectado para dar continuidade a […] O Meu Mundo não É Deste Reino no que poderia ter sido uma trilogia de romances […] completada por Gente Feliz com Lágrimas” (sublinhado meu) e fornece as datas das sucessivas revisões da narração: 1993, 2006, 2007, 2008 (neste último ano foram realizadas duas reescritas).
As coordenadas da vida editorial destas obras são as que se seguem:
• 1984 — “O Tempo de Todos Nós” — Aresta, Ponta Delgada
• 1986—“A Divina Miséria”— Entre Pássaro e Anjo—Lisboa, D. Quixote
• 1992 — “O Homem da Idade dos Corais”¬— Bem-Aventuranças—Lisboa, D. Quixote
• Lisboa, Fevereiro de 1993— “A Divina Miséria” — Entre Pássaro e Anjo—Lisboa, D. Quixote
• Madrid, Janeiro de 2006 —“A Divina Miséria” — Inédito em português — Publicado em espanhol, “La Divina Miseria”, segunda parte de Mi mundo no es de este reino— Ourense, Linteo
• Madrid, Maio de 2007—“A Divina Miséria” — Inédito
• Manta Rota e Açores, Agosto de 2008—“A Divina Miséria” — Inédito
• Madrid e Lisboa, Dezembro de 2008 — A Divina Miséria—Lisboa, D. Quixote
Se como indica Adelaide Batista (1993: 57) , existe nos Açores e na sua literatura um tempo de carácter circular que encontra o movimento dentro do estático, o movimento interior constatável no texto de base de A Divina Miséria seria este: as três primeiras versões têm nomes diferentes “O Tempo de Todos Nós” (título que será resgatado para intitular o “Livro Primeiro” de Gente Feliz com Lágrimas), “O Homem da Idade dos Corais” e “A Divina Miséria”. É entre “A Divina Miséria” de 1986 e a de 2006 que encontramos uma mudança formal claramente visível, porquanto esta última se adapta à estrutura física de O Meu Mundo não É Deste Reino: as primeiras frases de cada capítulo aparecem escritas em letra maiúscula e com forma piramidal, como acontece no início dos diferentes capítulos do romance. Não podemos esquecer que esta versão de 2006 foi editada como uma segunda parte de facto do romance de Melo O Meu Mundo não É Deste Reino, na sua tradução espanhola, Mi mundo no es de este reino.
Esta estrutura de continuidade do romance mantém-se na última versão de 2009, A Divina Miséria, já com autonomia textual. Esta narração tem sido, portanto, um projecto de romance, conto, segunda parte de um romance e novela “ou como se lhe queira chamar” (Melo 2009: 117).
No último caso, na edição de 2009, o texto adquire toda a independência, pelo facto de conformar fisicamente um livro por si só e de ir precedido por duas epígrafes: a primeira de Julio Cortázar com a explicitação de que foi transcrita de memória, facto este que quero relacionar, e voltando outra vez à circularidade temporal, com uma outra anotação: aquela que aparecia na primeira edição de O Meu Mundo não É Deste Reino aclarando que a tradução da estrofe de Beaudelaire utilizada como epígrafe era “livremente minha [de Melo]”. Também não é a primeira vez que Melo recorre a estas palavras de Cortázar: aparecem igualmente na crónica sobre a língua portuguesa incluída no livro Dicionário de Paixões. A segunda epígrafe é uma reflexão sobre o barroco de António Tabucchi, autor muito ligado aos Açores, em clara alusão ao estilo que marca A Divina Miséria, e com uma referência a um dos escritores barrocos espanhóis por excelência, Calderón de la Barca, unindo o livro à experiência espanhola de Melo. Para além das epígrafes, apresenta A Divina Miséria uma dedicatória que condensa a filosofia antiamericana e anticlerical da obra.
Por outra parte, se Heráclito se referiu à impossibilidade de entrar duas vezes no mesmo rio e Borges mostrou, através do seu magistral “Pierre Menard, autor del Quijote”, que não se pode escrever duas vezes o mesmo texto, todas as divinas misérias foram escritas por um João de Melo diferente de cada vez, porquanto a passagem do tempo transformou as circunstâncias, as pessoas, até a semântica individual, a vida secreta das palavras de que fala o poeta Yves Bonnefoy, ou a história; por exemplo, numa obra profundamente antiamericana como esta, e tendo em conta os acontecimentos políticos dos últimos tempos (Bush, Guerra do Iraque, etc.) a visão do autor foi com certeza mudando ao longo destes anos.
Como se se tratasse da tradução de um texto só conhecido pelo seu autor, as palavras mudam, as orações expandem-se, as estruturas variam, a dimensão espacial e a duração temporal vêem-se modificadas.
Assim, poderíamos afirmar que o gerador textual (tomo emprestada esta expressão de Jorge Fernandes da Silveira 2003:11 ) que impulsa a escrita deste texto é o mesmo; os significantes utilizados para narrar a matéria da história não. Recorrendo à metáfora platónica, existiria, por assim dizer, um texto original, e as diferentes versões seriam sombras, o avanço das versões aproximaria a narração do seu “ideal”.
Estes apontamentos estão ligados a um ensaio que, sobre esta obra, será publicado proximamente.
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A investigação para este artigo foi financiada pelo projecto da Junta de Castilla y León SA012A09
Melo, João de (2009) A Divina Miséria. Lisboa, D. Quixote
Batista, Adelaide Monteiro (1993) João de Melo e a Literatura Açoriana, Lisboa, D. Quixote
Silveira, Jorge Fernandes da (2003) Verso Com Verso, Lisboa, Angelus Novus
Nota: As Fotos pertencem a autora e ao acervo do Blog Comunidades.