Átropos
Amanhã, quando voltar a despertar o sol, já estarei morta. Restam-me apenas mais vinte e quatro horas. Não, não se pense que sou uma prisioneira condenada à pena capital, num país remoto. Sou apenas uma simples mulher, que sobrevive graças ao parco salário de jornalista num diário regional. Mas tudo começou no ano passado.
Por mera curiosidade e por me faltar assunto para escrever, consultei uma taróloga. Pedi-lhe para me ler as linhas do destino. De amores pouco havia a dizer, os que tinha vivido, vividos estavam e nas entrelinhas do horizonte acinzentado não se viam mudanças, nem novidades. Continuaria a ser um terreno pouco fértil a minha vida afectiva, pautada pelos desencontros e por uma certa predisposição para amar sempre o impossível e o inacessível. Seguiria o seu curso de rio tranquilo, sem ondas nem inversões de corrente. A nível profissional, continuaria a trabalhar imenso sem que adviessem quaisquer frutos do meu esforço, muito menos reconhecimento. A minha carreira literária prosseguiria tão transparente e despercebida como qualquer vidro primorosamente limpo contra o qual todos esbarram distraidamente. Publicara até à data quatro livros que pareciam ter o verdadeiro dom da invisibilidade: ninguém os vira, ninguém os comprara, ninguém os lera, ninguém os criticara, eram meros fantasmas que habitavam as prateleiras mais recônditas de raras livrarias. Mas… a certa altura a vidente engasgou-se, tossiu, quase asfixiou. Voltou a baralhar as cartas do tarot, voltou a redistribuí-las, voltou a tossir, acendeu e apagou velas três vezes…
– O que foi? Alguma doença? Algum problema grave? – comecei a perguntar, inquieta. – Pode dizer-me à vontade, eu nem sequer acredito nestas coisas…
– Sabe, eu tenho um acordo com os meus clientes, nunca gosto de falar em certas questões, afinal isto são só indicações, podemos alterar o nosso destino de diversas maneiras…
– Vamos, diga-me, o que lhe revelou essa carta?
A mulher voltou a tossir. Depois respirou fundo. Limpou com o lenço cor-de-rosa gotas de suor que lhe teimavam em escorrer pela testa.
– Como lhe disse, não há nada de novo na sua vida nos próximos anos. Apenas…Uma data e uma hora!
– Uma data e uma hora do quê?
– Da sua morte!
Esbugalhei os olhos e soltei uma gargalhada incrédula.
– 22 de Junho de 2015, às 15h07… Oiça, acredite que faço isto há 20 anos e nunca me aconteceu! É a primeira vez que a morte se me depara no caminho desta maneira…
– Pois, sabe, ainda bem que eu não acredito em tretas. Só cá vim mesmo para escrever uma reportagem para o jornal…
– Não me está a perceber – a vidente limpou com um lenço vermelho o suor que lhe escorria da fronte, a mão tremia-lhe – geralmente, as cartas indicam caminhos, percursos que podem ser alterados, mas neste caso, não há qualquer margem para dúvidas: é como se a sua vida fosse um romance cujo fim podemos espreitar.
Enfim, que posso eu dizer dos dezoito meses que antecederam esta data? Foram tão banais como os anteriores. Enviei mais curricula do que o habitual para diversas universidades e empresas portuguesas e estrangeiras, como se quisesse iludir, num passo de magia, tanto a morte como o fracasso que pautava a minha vida. Proporcionalmente, também aumentaram as cartas e os e-mails de recusa, sempre iniciados com a «fórmula mágica»: «lamentamos comunicar que o seu perfil não é o adequado para…, etc., etc. etc»
A verdade é que já pensava seriamente em fazer uma cirurgia plástica para mudar de «perfil», talvez através do implante de um nariz mais adunco…poderia ser essa uma hipótese de melhorar o meu famigerado «perfil». Na realidade, sabia que vivia num país com «medo de existir», onde muitos empregos eram obtidos através do tão «condenado» quiçá «chocante» tráfico de influências, onde o meu doutoramento obtido com nota máxima e o meu suado curriculum valiam muito menos do que a licenciatura de alguém oriundo de uma família influente, ou do que o bacharelato da boa amante de um Director ou de um militante de determinado partido político. Importava sempre a aparência e nunca a essência. O essencial, que segundo Antoine Saint-Exupéry é invisível aos olhos, fora inteiramente banido do quotidiano.
Assim, num meio onde o que importava era a visibilidade, os jogos de poder ou de conveniência, eu não passava de uma invisível jornalista de província. Estava consciente de que muitos dos anúncios de emprego já se encontravam previamente destinados a alguém, tão certos e seguros como o dia da minha própria morte. No entanto, continuava, ou pelo menos continuei a insistir, até ter concluído que, como a hora da morte se aproximava a passos largos, não valia a pena o sacrifício. A verdade é que me sentia muito bem, o que levaria a prever que, pelo menos, iria morrer de plena saúde.
Quando o dia fatídico começou a aproximar-se, decidi que o melhor a fazer seria viajar. Não conhecia ainda Barcelona, a cidade dos «prodígios» como lhe chamou Eduardo Mendonza e achei que talvez lá conseguisse ludibriar o destino. A verdade é que por mais racional que quisesse ser, aquela data permanecia, fixada na minha memória como um carimbo indelével. Cada gesto, cada pensamento, levar-me-ia inevitavelmente para os braços de Átropos, a parca cuja missão é cortar o fio da vida.
II
Cheguei a Barcelona no dia 16 de Junho. Gostei imediatamente das Ramblas, da alegria transparecida em cada esquina, em cada edifício talhado pela genialidade de Gaudi, para quem o original rimava mesmo com o regresso às origens, com o que de mais puro e genesíaco em nós habitava. Fizera a escolha acertada. Sentia-me rodeada por um círculo mágico, por uma aura de vida palpitante em cada pedra, em cada tijolo, em cada rosto. Como seria possível morrer ali? Nada parecia ter um horário definido, muito menos a morte.
Fiquei instalada no centro, num hotel perto da Sagrada Família. Os dias seguintes foram os mais tranquilos da minha vida: passeei pelas Ramblas, pela praia, li todos os livros que me apeteceu nas esplanadas, comi paella, bebi todas as bebidas que nunca provara, dancei perdidamente nas discotecas, conheci gente incrível…
No entanto, nas últimas três madrugadas, quando regressava ao hotel e desfalecia na cama, ouvia um ruído de passos aflitos pela rua, como se alguém estivesse a ser perseguigo.
Hoje, sinto-me estranhamente nervosa, só quero que o dia de amanhã passe e que, livre de perigo, posso regressar ao meu quotidiano normal, e quem sabe, revisitar a vidente, para lhe dizer que até a própria morte se esqueceu de mim. Provavelmente, quando regressar terei recebido dela, da própria “Ceifeira de Vidas”, um e-mail que dirá: «Lamento comunicar-lhe que após analisarmos o seu perfil e o seu vasto curriculum, o mesmo não se adequa às funções de falecida. A verdade é que não consigo adormecer. Começo a ouvir de novo, os passos a fuga inquieta na rua… vou até à janela: uma criança desesperada que foge dum homem que a persegue. Fico estarrecida! O meu quarto do 3º andar permite-me uma vista panorâmica do labirinto de ruas estreitas. Vão correndo por elas, num estranho jogo entre presa e caçador. Meu Deus! Tenho de fazer alguma coisa! Não posso deixar aquela pobre criança ser apanhada! Quem sabe se é um pedófilo depravado, um assassino ou um raptor que a tenta capturar. Mas o que poderei eu fazer? Ligo para a recepção, comunico o que vejo, peço que alertassem a polícia. Por mais alguns minutos, a estranha corrida continua. Até que vejo a criança subir por uma escada de incêndio até ao cimo do edifício em frente ao hotel. Penso que seria essa a minha oportunidade de a ajudar. Abro a janela, arranco o lençol da cama com o qual improviso uma corda e lanço-lha.
A criança era bem mais pesada do que se poderia supor e preciso de todas as minhas forças para a içar. Finalmente, fecho a janela, assim que a consigo arrastar para dentro do quarto. Tem um corpo estranho, vestida de negro, encapuzada – invulgar numa noite cálida de Junho.
– Pronto, agora estás em segurança. Vou ligar à polícia e…
A «criança» destapa a cabeça e mostra um rosto de homem, com uma ligeira barba e um olhar malévolo. Rapidamente tira do bolso uma enorme tesoura que me encosta à garganta.
– Esta história da criancinha engana qualquer um, não é? Tantos anos passados, tantas histórias escritas e caem que nem patinhos!
Fico sem forças. Os ponteiros do despertador marcam 3h30 da madrugada. Mas, ali, o relógio está adiantado uma hora, o que me dará ainda mais 40 minutos de vida.
– Oiça, enganou-me bem. Não tenho dinheiro, nem nada de valor…
– Ah! Ah! És tão ingénua! Uma verdadeira “caçadora de ilusões”! Como é que alguma vez poderias triunfar na vida? Não tens mesmo «perfil»! Não passas de uma tontinha estupidamente trabalhadora e honesta, valores que, hoje em dia, podem pertencer a dois domínios: ao da História e ao da Ficção – e em breve, suponho, que pertencerão mesmo ao da ficção científica, Ah! Ah! –
E os minutos escoam-se, derramando números luminosos esverdeados sobre a mesa-de-cabeceira. O homem despe a túnica negra e surgem duas asas de corvo negro.
– Bem, já viste que, no fundo, nada é o que parece. Então, vejamos: eu parecia uma criança indefesa perseguida por um homem perigoso. Nada mais errado. Era eu quem perseguia o pobre homem, mas a estrutura geométrica das ruas e o nosso percurso, fez com que desse a ideia contrária. Há quase uma semana que o tento apanhar, mas vai conseguindo escapar-se, embora não seja por muito tempo. Outra ilusão: pensaste, ao ver-me, que era uma criança, devido à minha baixa estatura. Agora vês-me com estas asas e estarás a pensar que fugi de algum baile de máscaras… Nada mais errado! Eu sou um dos Anjos Negros da Morte. Sou o nº 3, o que corta o fio da vida, que ceifa, o que a sabedoria clássica designava pela Parca Átropos. Esta tesoura verde enorme é a que serve para cortar os fios das vidas. No entanto, há dois anos que me quero aposentar. Sabes, como é, com os actuais cortes nas pensões e a intenção de se aumentar a idade da reforma, mais vale ser previdente. Além do mais, se colocasse uma foto minha no perfil do facebook não convencia ninguém. Chegou a altura de a terceira Parca surgir com a forma de uma mulher bonita (ou enfim, menos feia), no apogeu da vida. Vivemos numa sociedade onde se valoriza, acima de tudo, a aparência física: há um tremendo culto pelas roupas de marca, os tratamentos de beleza, os SPA, as cirurgias estáticas estão em voga. As pessoas tentam ser cada vez mais (e quase eternamente) jovens e belas. Por isso, a Morte tem de acompanhar a Vida Moderna! Agora imagina o susto das pessoas, oriundas duma sociedade onde tudo tem de ser belo e, paralelamente, fútil, quando lhe aparecer um Anjo-Anão, um pouco gordo, um pouco marreco, mal «enjorcado», com barba de três dias, mais feio e malcheiroso do que uma bota da tropa, com umas asas pretas de corvo descarnado… Pois, é minha, menina, o que achas que acontece??
Eu continuo muda, incapaz de falar de pensar, de existir, e faltam 5 minutos!!
– Tu não respondes. Já viste que não tenho nada a ver com os anjinhos que por aí andam representados em tudo o que é obra de arte: branquinhos, bonitinhos, perfeitinhos, ninguém sabe muito bem se têm sexo ou não… Enfim, e por que é que um anjo não pode ser assim como eu, diferente, horrendo e hediondo? Porque a mente e a imaginação humanas são muito limitadas e têm dificuldade em aceitar o que é diferente e o que escapa aos padrões estereotipados de beleza. Mas enfim, depois de quarenta anos ao serviço da morte, reformo-me hoje às 3h07 minutos!
Penso que, afinal, tudo bate certo: eu sou a sua última vítima!
– Bem, – prosseguiu aquela voz possante – com efeito, não requeiro a reforma antecipada, que aliás esteve prevista no Antigo Código do Trabalho Angelical, mas que entretanto, acabou… Agora, caio na humilhação de não me encontrar em condições de cumprir devidamente a minha missão, pois as vítimas fogem-me e recusam-se a morrer! Foi o que aconteceu com aquele homem, que devia ter morrido na semana passada. Isto cria grandes desequilíbrios no universo, pois eu já não estou adaptado às mudanças vertiginosas da sociedade actual! As pessoas fogem a sete pés quando me vêem devido à minha fealdade! Antigamente, ninguém ligava a isso… Por isso, minha menina está na hora! Deve ter sido o único lugar para onde não mandaste o teu espantoso curriculum vitae e… FOSTE SELECCIONADA! A partir das 3h07 minutos convertes-te numa das funcionárias eleitas da Morte, serás a nova e moderna Átropos! És um bocado desleixada com a aparência, mas com uma breve passagem pelo Instituto de Beleza do Além, vais ficar linda e aquele homem lá de baixo, que já sobreviveu a cinco cancros, um AVC e quatro acidentes de viação vai, finalmente, cair nos teus braços que nem um passarinho desamparado!
Vejo o meu corpo inerte no chão do quarto como se tivesse adormecido repentina e tranquilamente, com um sorriso a bailar-me nos lábios. Estou vestida com uma túnica branca, empunhando a enorme tesoura verde, que se torna luminosa como os minutos que desaguaram do relógio agora parado.
– Mas sabe, – tento argumentar, e estranho a minha voz subitamente tão melodiosa – para isto é que eu acho que não tenho mesmo PERFIL! Eu não sou capaz de andar por aí a matar pessoas…
– Que disparate, tu não vais assassinar ninguém, apenas cumpres as ordens do destino, do Fado, como diziam os Antigos. Nada mais. És uma mera «funcionária pública». Na verdade, nunca chegaste sequer a ter uma existência terrena plena, sempre fizeste parte das «criaturas etéreas» que vivem um pouco à margem da vida, por isso, nunca formaste uma família, por exemplo…
– Então, isso significa que eu praticamente nem sequer cheguei a existir? A minha vida foi pura ficção?
– Não… quer dizer, existir até exististe, mas…pouco. Vê a primeira página daquele jornal que está em cima da mesa.
De súbito, são abolidas todas as fronteiras temporais e espaciais. Numa mesa do café da aldeia onde eu vivera, encontra-se o Diário da Terra, onde trabalhei mais de quinze anos, que exibe a seguinte notícia: «A jornalista Ana Silva foi transferida da Casa de Saúde Mental onde se encontrava internada há uma semana, devido a estranhas alucinações, para o hospital distrital, tendo entrado em estado de coma na madrugada do dia 22 de Junho…»
Entro num túnel escuro. Depois, uma estranha leveza, como se, envolta pela minha túnica branca levitasse além de todas as vidas e de todos os mundos, num lugar, além-tempo e além-vida, no seio de uma etérea tranquilidade bordada de todas as esperanças.
Dora Nunes Gago in Travessias Contos Migratórios, Ed. Esgotadas, 2014 (adaptado)
Dora Nunes Gago, doutorada em Línguas e Literaturas Românicas Comparadas, é professora de Literatura na Universidade de Macau (China).