Berço Esplêndido,mas não tanto
Lélia Pereira da Silva Nunes
Eu acredito é na rapaziada
Que segue em frente e segura o rojão
Eu ponho fé é na fé da moçada
Que não foge da fera e enfrenta o leão
Eu vou à luta com essa juventude
Que não corre da raia a troco de nada
Eu vou no bloco dessa mocidade
Que não tá na saudade e constrói
A manhã desejada.
Eu acredito é na rapaziada!
Gonzaguinha,em E Vamos à Luta
O convite para um Encontro com colegas do Colégio São José, a turma de formandas do Curso Normal de 1964, foi um bom pretexto para visitar Tubarão,a minha cidade natal, (re)encontrar colegas que não via há mais de 40 anos, matar saudade de um tempo que já vai longe e abraçar as amigas de todo sempre, Márcia, Regina e Maria Elisa, partes da minha vida desde a meninice. Reabrir o baú das reminiscências e tirar de lá nossas histórias comuns, alegrias, emoções, passagens hilárias ou momentos de apuro, coisas que fazem parte de um passado e que naquele sábado voltava com a força do presente. Mulheres, mães e avós, donas de casa, professoras, profissionais liberais, empresárias. Geração dos anos 60, aquela que, mesmo ali na pequena Tubarão, distante do centros culturais do Brasil, também acompanhara as mudanças comportamentais que revolucionou a década dos dourados anos.
Por isso, não foi surpresa ouví-las falar e discutir calorosamente à favor da corrente de manifestações populares que acontecem por todo o Brasil e que na última quinta-feira, dia 20 de junho, marcou profundamente os limites entre o País real e o de mentirinha, a ilha da Fantasia Brasília – a capital federal.
Mulheres que concordavam com as palavras de ordem, de insastifação, de inequívoca revolta, cansadas de tanto escárnio com o erário público, de corrupção, de conviver com os níveis intoleráveis das mazelas sociais, do caos na segurança, na saúde pública, na educação, na mobilidade urbana, na tragédia diária das nossas cidades e na intranquilidade do homem do campo. Afinal, chegara a hora do “Basta”, de ouvir as ruas e sentir essa energia que sacode o País, da mobilização nacional, de acordar os brasileiros e clamar pela construção de instituições democráticas que, de fato, representem a vontade popular.
A tarde avançava, o Brasil ia atropelando a Itália com um placar de 4×2, a conversa continuava em torno dos últimos acontecimentos, da imensa participação popular nas manifestações que explodiram pelo País afora. O que se viu, na semana que passou, foi o protesto de mais de um milhão de brasileiros, afrontados na sua dignidade, tomando às ruas, escrevendo uma nova história, lutando por direitos e não apenas por vinte centavos do propalado aumento do transporte público. Os centavos foram a gota d’ água para os que foram às ruas protestarem contra o abuso de poder, os desvios de dinheiro, gastos públicos exorbitantes, os mais de 27 bilhões de reais desembolsados na realização da Copa das Confederações e o orçamento superestimado da Copa do Mundo, superior à soma das últimas três Copas.
Agora,era a vez da “geração shopping e das baladas”, a “geração internet” , sempre conectada e dependente dos smartphones, parecendo viver desligada do mundo real, a “geração do milênio” tida como despolitizada, dar o maior exemplo de cidadania e ganhar as ruas do Brasil protestando, primeiro contra o aumento dos transportes públicos e depois, para expor o seu descontentamento geral contra todos os governantes em todos os níveis e de todas as siglas partidárias. Uma juventude que não tem medo de expressar as contradições da sociedade, de jorrar a sua insatisfação em faixas, cartazes, bandeiras apartidárias, de soltar a voz conclamando a todos com gritos de ordem:“Vem pra rua vem”, “Queremos Saúde Padrão Fifa”, “Desculpem o transtorno estamos mudando o Brasil”, “Nem Direita, nem Esquerda. Somos Brasil”, “Saímos do Facebook”.
À frente, o Movimento Passe Livre (MPL), que nasceu em 2004 nas ruas de Florianópolis, de cara encoberta e voz forte marchando pelas capitais, cidades e vilas, que se alastra pelo País numa passeata pacífica, que quer discutir o Futuro do País e o direito de viver com dignidade.
O engajamento da juventude emociona a todos, há uma inquietude, um desassossego coletivo no emprestar apoio e participar do movimento que lavou a alma do povo, parou as cidades, fez o País tremer ecoando pelo mundo afora. “ O que ninguém esperava é que esses jovens tidos pelos estereótipos como os mais alienados seriam justamente aqueles capazes de ‘acordar o gigante adormecido’ e de devolver ao país o ânimo de poder mudá-lo. E isso sem a máquina do Estado, sem a cobertura dos sindicatos, dos partidos nem das organizações sociais. Apenas com a internet”, escreve Zuenir Ventura na crônica Protesto sim, arrastão não, o jornal O Globo, Rio de Janeiro.
Tenho mais é que concordar com o escritor Zuenir Ventura porque a origem dos protestos estão nas redes sociais que deram a palavra de ordem – BASTA, que saíram do facebook e tomaram as ruas do Brasil. Há vinte e um anos não se via nada igual. Algo de surpreendente está abraçando o País de forma apaixonante e ao mesmo tempo assustadora por sua capacidade mobilizadora, por sua energia pura que nos incendeia e nos faz refletir sobre a grande nação que dormia tranquila em “berços esplêndidos”, embalada por ventos da mudança que trouxeram a estabilidade econômica maquiada, ascensão social engrossando a classe média,e muitos programas de inclusão social que respondem por nomes milagrosos: “bolsa família”, “cesta básica”, “minha casa, minha vida”, “vale cultura”…
Este Brasil, “ Deitado eternamente em berço esplêndido,/ Ao som do mar e à luz do céu profundo,[…]” cantado no Hino Nacional, já não se deita em berços tão esplêndidos como poetou Joaquim Osório Duque Estrada,o seu autor.
Este é o Brasil de uma geração que nasceu na democracia, na vivência plena da liberdade, da cidadania, que percorre em cada aurora novos caminhos, lutando pelo futuro do País que será de seus filhos. São os filhos desta grande nação que não fogem à luta, “nem teme,quem te adora a própria morte”.
Arremato, voltando ao encontro com a minha turma do São José. O sábado,22 de Junho,invernal e ensolarado, marcou aquele dia de tantos afetos, saudade afagada e ideais partilhados à luz de mudanças tecidas em praça pública por nossos filhos e netos. Voltamos ao aconchego familiar cientes de que esta luta também é nossa. Somos a juventude de 1964 que não se verga diante de uma realidade que põe em risco o nosso estado de direito.
Nos despedimos ao cair da tarde, com o sol tingindo de vermelho o ceú da “cidade azul”, enquanto o rio Tubarão irrequieto e caudaloso a palmear o seio da urbis, a dividir e unificar o espaço com a arte de suas inúmeras pontes, seguia seu curso serpenteando ligeiro pelas verdes e férteis planície de seu imenso vale, lembrando as telas fascinantes do mestre da pintura catarinense, Willy Zumblick.
Hora de regressar. Atravessei a ponte com o coração aos pulos por divisar um grupo de jovens tubaronenses f
echando a Br 101, a rodovia que une o litoral brasileiro de norte a sul, protestando na terra da Anita Garibaldi.
É a rapaziada da minha terra, nela deposito a minha fé.
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Nota: Enquando encerrava este artigo o Congresso Nacional, temendo as manifestações, deu uma resposta efetiva às ruas, derrubando o projeto de emenda à Constituição – PEC 37 – que tirava o poder de investigação do Ministério Público.
Créditos Imagens:
1. Blog Nobat/Jornal O Globo
2. Diário Catarinense. Ag.RBS