(Antoniazzo Romano 1480-1485)
Dizia Jorge de Sena “que era católico sem ser cristão, por reconhecer o quanto a Igreja de Roma soube, como nenhuma outra, captar, manter e sublimar tradições antiquíssimas” (Ler Jorge de Sena)1. Nos poemas de Natal espalhados pelos seus livros as mensagens levam-nos a vários modos de reflexão, tal como em cada um de nós existe e se exibe o Natal que nos acolhe.
No silêncio da noite que ruídos cortam
habituais, comuns, e nem sequer tardios,
procura-me, flutuando mansamente,
ao lume de não estar pensando,
um desejo hábil de recordar outras noites como esta,
de enternecer-me, esquecido de mim e do mal que busco,
sobre o espetáculo delicioso da inocência,
que seria nem prazer aniquilar,
da virgindade, cujo sangue mal me saciaria,
da bondade, que tão ignobilmente me conhece
em horas de vício ou de traição,
da paz que ansiosamente nos procura nos caminhos do crime. Ai com que habilidade esse desejo me cerca,
me amolece, me penetra e inunda!
Lágrimas são já, e de ternura,
as que me assomam aos olhos e embaciam
carinhosamente os rostos que me cercam,
tão queridos e tão próximos! Sorrio,
e é já discretamente que sorrio humilde,
com misericordiosíssima ironia.
E havia imensa gente, e luzes, e cantava-se,
e bolos se comiam que eram só dessa altura do ano,
enquanto à volta da mesa o círculo se formava mágico,
em comovido e misterioso contacto com outros círculos distantes. Em repetir-se não perde, em recordar também não;
e amanhã será tarde, inoportuno, mesmo impossível,
além de que ficaria apenas um amargo na boca sem memória doce
que amanhã mesmo dará tão esquisito gosto,
ao amargor já velho e conhecido.
Neste comércio festivo que há dois mil anos quase
perdura mal cobrindo remendadamente
o solstício do Inverno e os deuses sempre vivos
de cuja falsa morte o mundo paga em crimes,
como em vileza humana, o medo que escolheu
quando ao claror da aurora rósea e livre
de viver como os deuses e com eles
preferiu a lei e a ordem projectadas
na sombra em sombras da caverna obscura
e desejou o mal em preço de ser-se homem –
tudo o que em milhares de anos é tribal
congrega-se feliz num doce rebolar-se
da traição de que fomos contra a vida.
Tão vil que levou séculos a inventar
um deus assassinado para desculpá-la,
e fez dele o comércio das famílias
que cortam no peru as raivas de existirem,
beijando-se visguentas, comovidas,
tal como têm babado os pés dos deuses,
ah não eles mesmos mas imagens vãs
que não resplendam da grandeza humana.
Alguma vez teremos o dinheiro
para comprar de novo o Paraíso,
em vez de prendas para o sapatinho?
O Paraíso aqui – aquele que venderam
no começar do mundo. E que nos trocam
por outros no futuro ou nos aléns,
agora, aqui, aberto a todos, claro
– um sol sem fim nos bosques ou nas praias,
uma nudez sem morte nos corpos sem alma. Talvez que o só vejamos por um instante
naquele espaço-tempo entre morrer
e o ficar morto para os antropófagos
dos deuses e dos homens, hóstia ou ossos.
Entretanto, senhoras e senhores, as Boas Festas.
Natal mais uma vez. Setenta e sete.
Há anos já que não escrevia como
por alguns outros sempre me escrevi
do que Natal não foi, não há, nem será nunca,
senão em desejar-se enfim com ele ou não
quanto de humano em nós seja o divino
que humanos nos constrói do nada em que persiste
sem de existir saber mais que pensarmos nós
ou nós querermos sem conhecimento
não de do mais além, ou mais aquém,
ou só de nós, mas só conhecimento
deste circunviver a que Natal se chama.
No mundo mais que nunca o sangue corre,
de todos escondido, por todos pago para
que se morra ou se mate em juro dos impérios.
Na pátria as hidras erguem as cabeças
e é perigoso gritar “não passarão”
como na Espanha há mais de quarenta anos,
quando co’a benção das potências todas,
elas passaram cilindrando tudo.
Culpados todos – porque não dizê-lo,
em vez de acusações que nada salvam?
Porque não confessar erros horrendos
que fizeram haver uma Direita
que não houvera nunca além de uns quatro asnos
ou gente ingénua defendendo a pátria
como lhe diziam que ela fora sempre,
ou meia dúzia de malandros que se enchiam
naquelas negociatas que o próprio Salazar
dizia consentir aos mais malandros deles?
Natal setenta e sete. Todos sentem
que foram ou têm sido sabotados,
traídos, ou vendidos. Mas só poucos
podem dizer que, mesmo santamente,
honrando os sonhos ou seus compromissos
até com as ideias que não tinham,
não sabotaram, ou venderam ou traíram,
em nome da liberdade e da democracia.
É triste mas é vero: com essas duas palavras
que juntas desejámos longamente
só é possível ainda o escrever-se
um verso inteiramente erado.