borderCrossings, ou a transatlanticidade do olhar de Vamberto Freitas
Talvez o título mais adequado para este artigo devesse ser “A coragem intelectual do crítico literário sem medo de arriscar”. Pois, é assim que compreendi, desde as minhas primeiras leituras, o caráter frontal, destemido, contundente e ao mesmo tempo formador, apaixonado e visionário da escrita de Vamberto Freitas. No labor diário da palavra, no fazer literário, na contextualização do texto deixa fluir o seu compromisso com uma escrita plural, livre, incisiva, sem amarras ou sem jamais capitular e trair seus ideais e valores.
Sirvo-me dos parâmetros da tradicional crítica brasileira dos anos 50 e 60, representada por uma plêiade de nomes, indiscutivelmente da maior envergadura intelectual – Álvaro Lins, Tristão de Ataíde, Alceu Amoroso Lima, Wilson Martins e o mais importante crítico da literatura do Brasil, o mestre Antônio Cândido que no próximo 24 de julho completa 94 anos – que arriscavam sua reputação toda semana nas páginas de jornais e revistas de circulação nacional, para afirmar que estamos diante de um mestre da crítica literária que dá vida a uma escrita séria, consistente, genial, criativa e de grande sensibilidade estética, e isso me intimida um pouco.
Vamberto Freitas escreve muito bem. Escreve com domínio absoluto sobre a Literatura Açoriana como a da Diáspora. Escreve como um semeador que ama cada palmo da terra a ser lavrada e está a semear com firmeza e lucidez, dando visibilidade à criação,aproximando geografias de nossos afetos e a transnacionalidade cultural e histórica, de forma persistente.
Sua obra abraça a tradição literária açoriana que atravessa os séculos e luta por seu lugar junto da produção estética nacional, daí a postura coerente na defesa da territorialidade da literatura açoriana (refere-se a “ uma estética da territorialidade” em A Ilha em Frente:Textos de Cerco e da Fuga, 2000) e a existência, nos Açores, de um sistema literário que funciona como um sistema de constituição identitária e expressão de identidades – coadunando com o pensamento do brasileiro Antônio Cândido.
Surpreendem na sua obra as pontes alçadas entre margens. Primeiro, na condição de emigrante na América, seu olhar acompanhou, atentamente, a expressão literária luso-americana escrevendo resenhas e ensaios críticos sobre a temática da emigração e publicando nos meios de comunicação social luso-americanos, açorianos e do continente português no conceituado Diário de Notícias. Coletâneas de textos foram publicados, na década de 90, sob o título comum de “Jornal da Emigração”, retratando, de forma vigorosa, “estas pontes entre as ilhas do mar e as ilhas da terra de ambas as margens do oceano, agora cada vez mais Rio Atlântico” de que nos fala Onésimo T. Almeida no admirável O Peso do Hífen. Depois, de volta aos Açores, vivendo em Ponta Delgada e como Professor da Universidade dos Açores continua sua trajetória literária por trilhas do jornalismo cultural, ensaio, crítica literária. Apresenta o desabrochar de uma escrita limpa, brilhante, parida do seu viver entre dois mundos, de margens entrecruzadas, que se tocam suavemente como uma carícia, com estilo erudito, sabedoria, perspicácia, respeito e reverência a uma literatura feita no Arquipélago e nas comunidades da Diáspora, notadamente nos Estados Unidos da América e Canadá.
Observem o seu olhar atento, derramado, esperançoso e encantado com a emergente literatura de luso-descendentes na América do Norte que escrevem em inglês sobre temas atinentes à vida e às tradições de seus ancestrais transmitidos, em grande parte, pela oralidade em vivências multíplas e nas experiências dos emigrados.
Na arquitetura da sua escrita sem fronteiras, aberta para o mundo tal qual a sua janela se abre, de par em par, lá na Praia do Pópulo, e de onde se faz ouvir e muito bem. Sua ponte se amplia ante seu olhar arguto e avança transformando-se num viaduto arrojado, alongado num grande abraço cheio de mobilidade, tempero, cor e vai ao encontro do Brasil. Regressa ao tempo de estudante na Califórnia onde foi aluno de Nancy T. Baden, a professora que muito contribuiu para este seu olhar plural ao partilhar “todo o seu saber e sensibilidade transcultural e transnacional” (in:Imaginários Luso-Americanos e Açorianos: do outro lado do espelho).
Meu conhecimento com a obra de Vamberto Freitas data de 1995 quando comecei a receber aqui, na Ilha de Santa Catarina e quase no finzinho da América do Sul, o jornal Correio dos Açores que trazia o Suplemento Açoriano de Cultura – SAC, sob a sua coordenação. Uma leitura que se tornou obrigatória à medida que intensificava a teia de interações socioculturais entre Santa Catarina e os Açores. O olhar transatlântico de Vamberto Freitas me levava a descortinar um mundo de ilhas literárias dispersas por outras geografias e do qual pouco conhecia. Seu editorial e seus ensaios, ora chegavam fortes, impulsivos, bramindo como o nosso vento sul, ora cheirando a saudade e suaves como a brisa que vem do mar. Com grande sensibilidade ia desfilando realidades socioculturais que, de algum modo, eram familiares pelo entrelaçar da circunstância histórica da emigração/imigração.
Desde então, comecei a andar em “dobadoira” pelo universo cultural açoriano, num constante vaivém e não mais parei, investigando e escrevendo sobre as tradições culturais açorianas (de cá e de lá), descobrindo o papel da literatura açoriana na formação da identidade e me apaixonando por este mundo de ilhas que o mar aparta, cerca e reúne e a geografia batiza de Arquipélago.
Todo este longo preâmbulo vem a propósito do lançamento de seu mais recente livro “borderCrossings: leituras transatlânticas”. Depois de O Imaginário dos Escritores Açorianos (1992), Mar Cavado: da Literatura Açoriana e de Outras Narrativas (1998), A Ilha em Frente: Textos do Cerco e da Fuga (1999) e, ainda, Jornalismo e Cidadania: dos Açores à Califórnia (2001), obras que são referenciais para estudantes, professores e investigadores na percepção do imaginário açoriano no arquipélago e nas comunidades da diáspora e se debruçam no entendimento do sistema literário açoriano que Vamberto Freitas, com maturidade intelectual aponta, denodadamente, a existência e reivindica o seu reconhecimento. Tamanha é a força dessas ideias, que pelas páginas de seus livros respiram e tomam corpo, que seu impacto é comparável ao “Mar Cavado” que circunda o homem das ilhas.
Imaginários Luso-Americanos e Açorianos: do outro lado do espelho (2010), na sequência, trouxe o resultado de sua ação desbravadora por novos territórios de arte e afetos abordando a emergente literatura de luso-descendentes na América do Norte e escrita na língua inglesa. Sem dúvida, já integrante do cânone literário açoriano. Constitui uma coletânea de textos de todo significante, uma arquitetura ao mesmo tempo imagética e profunda. Trata-se da inegável “viagem para dentro”, uma longa e sentida viagem. Suas palavras prefaciais bem o atestam:“ (…) depois de ter passado uma boa parte da minha vida a ler, estudar e a escrever sobre literatura açoriana e de imigração dei-me conta de que através da escrita dessa geração de luso-americanos (…) eu combinava os meus dois mais significativos e significantes mundos, os Açores e a América, num acto contínuo de melhor me entender a mim próprio assim como a nossa experiência de vida bipartida”.
Seu borderCrossings, leituras transatlânticas é o décimo primeiro livro de uma profícua produção literária que inclui traduções, principalmente da poesia de Frank X. Gaspar e d`alguma prosa de Katherine Vaz.
Foi minha bagagem de leitura no percurso entre Pico, Terceira, Ponta Delgada, Lisboa e a Ilha de Santa Cata
rina. Não deixa de ser curioso o fato deste volume “ter emigrado” pelos mesmos caminhos dos meus ancestrais açorianos e ter por temática a literatura transfronteiriça.
Os textos de borderCrossings estão reunidos em três grandes capítulos: “Em Casa nos Açores”; “Memória do Brasil” e “A Diáspora em Mim”, contempla a diversidade de gêneros (ficção, poesia e ensaio) e respondem por sua unidade temática: “a literatura transfronteiriça como representação identitária de um povo ou País” ( diz em recente entrevista para o jornal Terra Nostra de Ponta Delgada). Compreende uma coletânea de textos publicados nas colunas “BorderCrossings”(Açoriano Oriental), “Nas Duas Margens” (Portuguese Times) e em revistas universitárias ou de institutos culturais açorianos.
Ensaios maiúsculos, frutos de uma carpintaria linguística excelente que nos remetem por distantes fronteiras: as reais e as do imaginário, onde vozes se cruzam e deixam ecoar seus sentimentos de estar ou de pertencer a um lugar. Ou de apenas voltar à terra dos seus ancestrais e ir ao encontro dos seus Eus.
Sua escrita é antes de tudo um trabalho artístico, e Vamberto Freitas maneja a pena-cinzel com a maestria de um artíficie, dando forma sensível à palavra, na criação da arte literária, no fortalecimento da identidade açoriana.
Sabe ser voz em discursos desenhados de/para dentro ou de/para fora do espaço arquipelágico, uma produção com marcas de intensa açorianidade a falar desse universo trino: terra insular, cerco do mar e emigração. A historicidade de um povo marcado por conflitos e culturas, pela condição de estar fora da Ilha ou dentro dela e ter a alma banhada no mar salgado.
Quero, agora, partir para o remate falando da sua escrita lavada de brasilidade e presente em borderCrossings, no capítulo “Memória do Brasil.” Uma escrita vibrante, “amorenada” que fala apaixonadamente dos nossos autores e livros, sem contudo perder a sua visão crítica. Já não me espanta a sua sensibilidade sobre o Brasil nem a riqueza de sua narrativa sobre os nossos mundos, a nossa intimidade cultural (que compartilhamos como herdeiros de uma matriz lusitana comum) desvendada por caminhos da literatura. Leva ao conhecimento de seus leitores uma escrita brasileira de viés português e, de maneira especial, de cariz açoriano. Seu interesse vai além da leitura sistemática com vistas à criação de um texto. Penetra nos labirintos da palavra escrita, desnuda sentimentos do autor, vai ao encontro da gente brasileira, fazendo uma sociologia cultural e contextualizada.
Referencia o Brasil Nordestino de Gilberto Freire (Casa Grande & Senzala), Guimarães Rosa (Grande Sertão: Veredas), Euclides da Cunha (Os Sertões) e o Brasil Sulino de Luiz Antonio de Assis Brasil (Música Perdida; Um Quarto de Légua em Quadro), Érico Veríssimo (O Tempo e o Vento) e dos cronistas Luiz Fernando Veríssimo e Sérgio da Costa Ramos traçando vias paralelas entre os dois extremos do País na compreensão de sociedades que têm na história e no pastoreio pontos de convergência.
Nos últimos anos, vem produzido ótimos ensaios sobre escritores brasileiros: Assis Brasil, Ângela Dutra Menezes, Ubaldo Ribeiro, Ferreira Gullar, e cito, de modo especial, o belíssimo ensaio “José, ou a grande arte de José Ruben Fonseca”. Garimpa o esplendor que viceja em Ruben Fonseca, se delicia com sua escrita de abundante humanidade, com o fio tênue que separa a realidade de seus contos em José, onde não faltam a exuberância da nossa tropicalidade e a sensualidade brasileira.
A escrita de Vamberto Freitas será sempre uma escrita de intervenção e respeito à condição humana, seja ao retratar uma sociedade na América, nos Açores e (ou) no Brasil Meridional, para onde acorrerram seis mil açorianos e mesmo esquecidos e largados à sua própria sorte construíram o futuro e deixaram de herança todo um imaginário enraizado que se expande, numa esquina oceânica, abaixo do Equador.
borderCrossing é um retrato fisionômico do seu autor. É voz centrada numa profunda humanidade e por esta humanidade está sempre em guarda, sempre muito à vontade para dizer o que pensa e sustentar o que diz, sem medo de correr riscos ou de colocar a prêmio a sua reputação de homem de letras. “Manter firme uma opinião, na vontade do homem, em mundo transviável tão grande, é dificultoso”, adverte Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas.
Eis, pois, borderCrossing, para se ler com muito prazer e sentir a energia deliciosa que passa (e fica) na transatlânticidade do olhar lavado de Vamberto Freitas:“Creio ser esse o fio condutor deste atravessar de fronteiras em busca da beleza e “verdade” literária que nos diz, rediz e nos reinventa numa já longa história de andanças no outro lado do Atlântico”.
Diferentemente do que escreve Joel Neto, Vamberto Freitas não é um sobrevivente na sua arte literária.
É mitológico!
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FREITAS, Vamberto, borderCrossings: leituras transatlânticas, Ponta
Delgada, Letras Lavadas Edições, 2012
Florianópolis, Ilha de Santa Catarina,
29 de junho de 2012