“Brasil” de John Updike
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Vamberto Freitas
A citação de acima poderá explicar em parte algumas das objecções que a crítica brasileira e mesmo alguma nos EUA opôs ao romance do grande escritor John Updike, Brasil, aquando da sua publicação original em 1994, versão que viria a ser traduzida e publicada em Portugal pela Civilização Editora em 2009, o ano da morte do autor. Comece-se aqui por dizer que a vastíssima obra de Updike a partir dos anos 50 nunca foi, como as grandes obras nunca foram, pacíficas para a crítica, especialmente a crítica e ensaísmo que combinam desconstrução textual e ideológica em consonância com o politicamente correcto ou incorrecto de épocas recentes. De qualquer modo, Updike, ele próprio ensaísta e recenseador de outros escritores da sua geração, nunca cedeu em nenhum dos seus romances profundamente americanos na sua ética e cosmovisão, a classe-média em foco nas suas tribulações e hipocrisias sem fim, em que o sexo, ou a falta dele, se torna quase na metáfora dominante das suas narrativas. Se faleceu sem receber o Prémio Nobel (ganhou todos os grandes e prestigiados reconhecimentos públicos do seu país) poderá ter a ver com outros juízos ou circunstâncias, mas a acusação persistente de uma suposta postura demasiado machista, por um lado, e levemente racista, por outro, raramente estiveram ausentes de muitas apreciações que não poderiam deixar de reconhecer a grandeza da sua arte formal, a pertinência universalizada da sua temática modernista, as estórias genialmente contadas por quem desde há muito se havia tornado num dos mais distintos escritores de largo alcance, e associado em primeiro plano a publicações como a revista The New Yorker.
Brasil (Brazil, no original, a versão que li apesar da nota bibliográfica da edição lusa aqui, consultada por questões de tradução), foi o segundo romance em que o autor sai do seu território natal (The Coup/O Golpe foi o outro, situado num fictício país africano), torna-se como que num exercício de comparação com tudo o que de mais íntimo o movia e comovia, os Estados Unidos do século vinte na sua comoção geral, essa outra sociedade (que sempre se teve por ser excepcional) na sua perpétua reinvenção novo-mundista. Não admira que o outro grande país a sul despertasse o interesse envolvente de John Updike (tendo nascido num dos mais puritanos dos estados americanos, Pensilvânia, e vivido quase toda a vida noutro, em Massachusetts, ambos nos antípodas de tudo o que se refere ao Brasil), não pelas semelhanças mas sim, creio, pelas diferenças profundas e naturais recebidas das heranças históricas de dois extremos civilizacionais da Europa. Aliás, de quando em quando na sua narrativa Updike alude directa ou indirectamente ao passado e à influência lusa sem rival no Brasil colonial, indelével e que continua a definir, para o bem e para o mal, os contornos político-económicos e sociais daquela grande sociedade. Não faz juízos de valor, sobressaindo o seu fascínio pela mistura racial mesmo que a convivência, contrariando muitas ideias feitas, não seja de modo algum pacífica ou de todo democrática. Para além do seu conhecimento pessoal do país, Updike anota num posfácio a Brasil os escritores que leu em preparação para o seu romance, todos eles hoje canónicos na cultura literária brasileira, desde Machado de Assis e Euclides da Cunha a Jorge Amado e Nélia Piñon. Gilberto Freyre é directamente mencionado na própria narrativa, tal o impacto e influência desde sempre que Casa Grande e Senzala exerceu entre os brasilianistas e uns outros tantos estudiosos e intelectuais norte-americanos.
Brasil abre numa praia de Copacabana nos anos 60, já com o país sob a ditadura que o haveria de governar até 1985, e encerra após a reinstauração da democracia. Acredito ser de grande importância o tempo ficcional da narrativa, pois vivia-se ainda numa contradição natural no decorrer do tempo e dos acontecimentos. O velho convive com o novo, a descrença com a esperança — pessoal e colectiva. Estamos efectivamente no Brasil da música inovadora e rebelde de Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil, que fintavam os poderes de vários modos, como na época do nascimento de uma outra literatura urbana após o longo domínio do regionalismo literário nordestino, e, sim, estamos no país do Carnaval e do sexo, onde até as árvores parecem fazer amor e molhar os pés na espuma branca das ondas sul-atlânticas um orgasmo sem fim. Poderá ser esta última insistência de Updike numa mítica geografia irremediavelmente sensual uma das maiores objecções dalguma crítica brasileira e, até, repita-se, norte-americana. Mas também a sensualidade sem freios linguísticos ou sociais do romance deverão ser vistos, no seu andamento brilhante entre cidade e selva durante o qual tanto o passado histórico como o detalhe da paisagem e gentes nativas do interior são descritos minuciosamente, como uma metáfora da vida e morte, do desejo e do pecado original não dos brasileiros, mas da Humanidade no seu todo. Que resta, afinal, aos contestatários de uma sociedade cimentada na sua Tradição segregada em classes sociais e raça, apesar da ideia de que Brasil constitui a maior democracia racial do planeta não ser de todo desprezível? O romance tem início no encontro casual entre dois jovens do Rio de Janeiro, um adolescente, Tristão, negro, de faca na mão e dedicado ao crime do roubo a gringas desprevenidas, residente numa das favelas circundantes, e de Isabel, branca e filha da classe média alta, virgem de corpo e experiência de vida. Trata-se de uma representação fortemente inspirada nos trópicos europeizados, como refere o próprio autor, em The Romance of Tristan and Iseult de Joseph Béder, ou em Tristão e Isolda da famosa ópera de Richard Wagner. Por entre os batuques afro-brasileiros e ameríndios e o domínio violento da classe dominante, a tragédia inclui o amor total mas será inevitável neste outro contexto sócio-político e cultural.
Brasil, uma vez mais, é essa representação de um país em transição, ao mesmo tempo amordaçado e a despertar vivamente para as mudanças radicais que o viriam a colocar na sua actual etapa histórica. Tudo aqui — as cidades gigantescas, centros da indústria e do comércio internacional, como São Paulo, um Rio de Janeiro romântico mas parado no tempo e servindo quase só de poiso luxuoso à classe dominante mas fora da política, o sertão totalmente selvagem ou abrigo de pequenas e perdidas povoações nas quais, no entanto, já se vêem sinais de caminhos em construção que levarão a outros horizontes e vontades — serve de fundo humano e político à tentativa de sobrevivência de dois jovens rebeldes que não aceitam o lugar que lhes haviam reservado no mundo, nem no mais alto escalão social nem no inferno das ruelas faveladas. Ninguém associará qualquer obra de John Updike a intenções ideológicas, e muito menos revolucionárias. Mas será precisamente essa capacidade narrativa, aqui entre a observação despida de complicações formais, a efabulação e até mesmo certo realismo mágico, que torna um romance como Brasil algo mais do que prazer puro da leitura e do voyeurismo sexual das suas páginas tornando-se num retrato duradouro e crítico de um determinado lugar e tempo. Quando Updike é acusado de estar constantemente a comparar o pais a sul com o seu a norte, comete-se uma injustiça preconceituosa, se bem que aqui ao contrário. Que esperar de um narrador que se assume estrangeiro, especialmente quando nunca insinua superioridade ou inferioridade de um lado ou outro, apenas diferença?
Por vezes, toda a ironia de uma longa narrativa poderá estar escondida numa simples palavra, passo ou incidente. O fecho de Brasil é esse momento neste romance, já para não mencionar que a viragem de toda a narrativa acontece quando se dá uma mudança mágica no corpo de Tristão e de Isabel, já adu
ltos e aprisionados nas florestas ou cerrados do interior fundo e escondido, acabando tudo na mesma praia de onde tinham partido muitos anos antes.
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John Updike, Brasil (Tradução de Carmo Romão), Porto, Civilização Editora, 2009.
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Vamberto Freitas: Açoriano,da Ilha Terceira.
Crítico literário,ensaísta,tradutor e professor da Universidade dos Açores.
Crédito Imagem John Updike:http://passageiroemtransito.blogspot.com/2009_01_01_archive.html