Breves notas sobre as transformações do discurso poético
de José Francisco Costa [i]
Quem se decidir a ler os livros de poesia publicados por José Francisco Costa só vai ter um problema, encontrá-los no mercado. Uma vez ultrapassada a dificuldade, tudo se facilita: não são volumosos, leem-se com agrado e dão-nos a conhecer um poeta em crescimento.
Mar e Tudo, o primeiro – 1998 – é um livro de contos, nove ao todo, mas já traz evidente a marca poética, particularmente nas epígrafes de cada um deles, como notou Francisco Cota Fagundes [ii]:
1. para quê o adeus / se partir é / ficar para sempre?… (“School Bus”);
2. sapateia teia teia / com fios enlaçados no olhar (“Nome Próprio”);
3. ainda vais aí? / mexe-me essas mãos / rema para aquele mar, ali (“Terra de Longe”);
4. e em cada ilhéu / um barco / na linha dos olhos (“Segundo Shift”);
5. dias plúmbeos / indistintas manhãs / num tempo diluído (“Fio do Tempo”);
6 . para além do olhar / fazemos ponto de cruz / com a linha do horizonte (“À Nossa”);
7 . as palavras são ondas / vindas / da memória (“Festa Comum”);
8. qual seria a cor do mar / se a do céu não existisse (“Suor Frio”);
9. o mar ficava manso / a maré vinha morta / era um lençol (Enquanto a ilha for…”).
Alguns destes versos hão de integrar-se em poemas de E da Carne se Fez Verbo – 2000 – como é o caso de “sapateia / teia / teia”, em “O Outro Tom da Sapateia”, e o de “um barco na linha dos olhos”, “Sina de Véspera” e, ainda, o de “fazemos ponto de cruz / com a linha do horizonte”, em “Imagem de mim”.
Os temas de fundo lançados nos contos vão manter-se e ampliar-se agora: terra, mar, amor, emigração, temáticas que, aliás, vão constituir o cerne de Ficou-me na Alma Este Gosto – 2011-, embora muito esbatido, já, o tema da emigração.
Se nos ficarmos pelo plano formal, as 37 poesias de E da Carne se Fez Verbo evidenciam uma dupla tendência, o apego à redondilha maior de estrutura rimática geralmente tradicional, e a opção marcante pelo verso livre. Não raro encontramos uma intencional mistura dos dois processos: a seguir a estrofes de tendência modernista aparece uma quadra bem ao gosto popular. Por exemplo:
«Oh, Nova Inglaterra dos meus invernos
Com neve, frio, desamor, brancura, alma sem cor.
[…]
Quando a gente aqui chegava,
O sonho à terra vendia.
O nosso corpo ficava,
A nossa alma partia.
[…].»
(“O say can you see?”)
Uma das técnicas que chama a atenção é o recurso ao processo iterativo, ora no início das estrofes (Tristes / andam tristes, “Endoenças”), ora no fim, à maneira de refrão, (Não te esqueças, meu amor / Do recado de voltar, “Recados do meu olhar”). Sinal evidente de que muitos destes versos foram fabricados para letras de cantigas do reportório do poeta que bem as cantas e as dá a cantar a outros.
Prova de lirismo incontido é o predomínio absoluto do ‘eu’ como sujeito lírico quase sempre em diálogo com os diversos “tus”: Vejo um barco na linha / dos teus olhos, “Sina de Véspera”; Ai menina, quem me dera, (“Dúvida de uma vida”).
Não posso deixar de referir, porque me toca especialmente como jorgense, a bem conseguida tradução / descolagem de “Vinho da Fajã” de Art Coelho, poeta e romancista californiano de raízes açorianas:
«O hálito do tempo derrama-se sobre estas Fajãs
em teus socalcos benzidos de hortênsias,
ilha natureza donzela no sereno das manhãs,
alimento do meu sonho antigo, pão dos meus dias.
[…].»
Em Ficou-me na Alma este Gosto, o discurso poético de José F. Costa explora formas encetadas em E da Carne se Fez Verbo e ganha outras, a caminho do normal amadurecimento da sua lira patente em boa parte das 82 poesias que enformam o livro.
Em termos formais, a maior novidade está no recurso ao decassílabo heroico:
Com só verso teu me comoveste:
O da verdade estranha, mas sincera.
E a tua mágoa, amor, me devolveste
Em gesto que de ti eu já perdera.
(“Dor”)
recurso posto na construção de seis sonetos, onde raramente ganha o ritmo sáfico.
“S. Valentim”
(para a Lourdes)
Por ti andei caminhos sem te ver.
Passei por ti no becos da demora.
Mas quando olhaste, o corpo estremeceu:
A voz da alma lhe bendisse a hora.
Cheguei. E teus cabelos mergulharam
Num vale de polhos feitos de que vejo.
E à paz do sonho quente regressaram
Palavras novas, filhas do desejo.
Amor morrer não pode em meu olvido,
Nem mesmo a velha idade há-de matar
O gozo que há no tempo proibido:
Viagem louca de saber e sal
Onde o batel de casco envelhecido
Se embala à terna luz do teu olhar.
* * *
Quem se decidir a ler a obra poética de José Francisco Costa faz sentido que comece pelos contos de Mar e Tudo.
Vai valer a pena!
Amadora, 120617
Olegário Paz
[i] Aquando da apresentação de E ficou-me na alma este gosto por Leonor Simas, na livraria CULSETE.
[ii] Gávea-Brown, vol. XXI, 2000.