1. A pintura de Artur Bual surgiu no panorama da arte portuguesa há sensivelmente meio século. Nesse tempo a arte abstracta, depois do período de acalmia de entre as duas guerras, tinha entrado em alta naEuropa e igualmente, senão mais, decerto mais, nos E. U. da América (para onde, aliás, haviam emigrado muitos dos principais artistas das vanguardas europeias do princípio do século).
Em Portugal, os primeiros sinais de abstraccionismo na arte apareceram logo em 1945, justo no ano do desfecho da guerra. Esses sinais encontram-se nos primeiros quadros abstracto-geométricos de Fernando Lanhas e de um ou outro artista, poucos, e nem todos que haveriam de seguir depois no caminho do abstraccionismo, como Joaquim Rodrigo, Nadir Afonso, etc.. Foram vistos, primeiro, em exposições colectivas de arte figurativa e só depois também numa ou outra exposição individual. Nadir, Jorge de Oliveira, Lanhas, foram dos primeiros a expor individualmente pintura abstracta.
Não obstante, há meio século a arte abstracta ainda não tinha em Portugal estatuto de movimento. O que havia eram uns tantos artistas que pintavam quadros abstracto-geométricos e outros tantos que levavam as suas audácias líricas ou expressionistas até ao limite da abstracção. Entre estes António Dacosta, Cesariny, Fernando de Azevedo, Vespeira, por exemplo.
Foi então que abriu em Lisboa um I Salão de Arte Abstracta , na efémera e controversa, e hoje histórica , Galeria de Março, por iniciativa e com pertinente apoio crítico de José-Augusto França. Esse Salão ainda suscitou reacções agressivas do público e até deu origem a polémicas entre os movimenos que naquele tempo disputavam a vanguarda, mas o próprio facto de se justificar então um salão de arte portuguesa abstracta já era um indicador de que o Abstraccionismo em Portugal havia deixado, enfim, de se confinar a uns poucos de casos isolados de artistas para se tornar um movimento . De facto, a arte abstracta já começava então a disputar ao Neo-Realismo e ao Surrealismo um espaço próprio na vanguarda da arte portuguesa e pode-se dizer, de resto, que os anos 50 foram os do seu apogeu em Portugal, a pontos de se justificar uma retrospectiva de arte abstracta mesmo antes do fim do decênio, em 1958.
Bual encontrava-se entre os mais originais pintores dessa época.
2. De facto, na sua tese L’Art dans la Societé Portugaise au XX.ème Siècle , apresentada em 1963 na École des Hautes Études de Paris, secção de Ciências Sociais, José-Augusto França incluía Artur Bual, como iniciador do Gestualismo na pintura portuguesa, entre nove pintores que considerava representativos das várias tendências do Abstraccionismo desse tempo. Os outros eram Vespeira, Fernando Azevedo, Lanhas, Nadir, Joaquim Rodrigo, Menez, João Vieira e D’Assumpção, citados por esta ordem.
Hoje, à distância de três para quatro décadas, podemos observar como evoluíram as tendências abstraccionistas daqueles artistas nesse longo e perturbado tempo e concluir (segundo as nossas convicções estéticas actuais) se eles, e não outros, eram de facto, na altura, os artistas mais representativos da arte abstracta em Portugal e se as suas tendências de então, ou quais delas, vieram, realmente, a adquirir espessura no tecido histórico do nosso Abstraccionismo.
Naturalmente que haviam de surgir discrepâncias nas nossas conclusões (digo, nas conclusões dos actuais críticos, historiadores e público da arte) se tivéssemos de refazer a lista atrás citada; mas não é essa a questão. O que pretendo salientar é que, com o volver do tempo, é provável ter-se alterado num ou outro pormenor, ou mesmo em certos aspectos essenciais, a visão que tínhamos nos anos 60 da arte abstracta que se fazia em Portugal nessa altura. Tal nos levaria, sendo assim (e certamente seria) a introduzir alterações na lista elaborada por J. – A. França, suprimindo uns nomes e pondo outros no seu lugar, de harmonia com o que se nos afigura hoje serem as tendências da arte abstracta portuguesa há trinta e tal / quarenta anos. (Isso seria natural. Em Arte, o tempo é como o Sol no seu giro diurno: projecta a sua luz sobre as coisas iluminando-as sucessivamente de ângulos diferentes, alterando-lhes a cada passo as proporções, fazendo sobressair perfis antes obscuros e ensombrando outros, modificando o jogo de claro-escuro da atmosfera onde as coisas – que estão sempre no mesmo lugar – parece moverem-se). Todavia, por discrepantes que pudessem ser as listas de pintores historicamente representativos das várias tendências da pintura abstracta em Portugal nos últimos trinta ou quarenta anos, qualquer uma seria incompleta sem o nome de Artur Bual (isto independentemente do juízo de valor que se queira fazer da obra deste pintor, embora, a meu ver, também pelo facto de se tratar de um dos maiores pintores portugueses da segunda metade do século XX); e seria incompleta, porque a pintura de Bual é a primeira e ainda hoje a mais importante referência do Gestualismo na pintura portuguesa.
Da pintura gestualista é possível gostar-se ou não e mesmo discutir sobre a sua validade estética; aliás, não faltará até quem ponha em causa a boa-fé de alguns pintores gestualistas que praticam o gestualismo por mera falta de jeito para a pintura. Mas, seja como for, o caso é que não é possível fazer uma síntese histórica nem um balanço crítico dos últimos quarenta anos de pintura portuguesa sem mencionar a pintura gestualista.
Ora esse processo de pintura começou em Portugal com Artur Bual em 1958 e foi na sua obra que atingiu, e mantém ainda, a sua mais alta expressão estética…
3. Bual aparece no meio artístico português, como dissemos acima, no começo dos anos 50 do século XX, um tempo de alguns equívocos mas também de intensa ebulição criativa, em que a arte abstracta, após algumas realizações isoladas na linha do abstraccionismo geometric desde 1945 e de se exibir a meias com o Surrealismo pela transição do meio século – como tendência, ou divergência, desse movimento, digamos – , passa finalmente a ser vista como uma Vanguarda entre (ou contra) o Neo-Realismo e o próprio Surrealismo, movimentos que eram, desde o final da Guerra (a II Mundial), os arraiais da arte moderna que agitavam mais alto as bandeiras. As três correntes – o Neo-Realismo e o Surrealismo e agora também a arte abstracta – tinham territórios bem delimitados no mapa das teorias, mas no terreno da prática circulava-se facilmente através das barricadas que as opunham tão encarniçadamente umas às outras. Dacosta, Cesariny, Costa Pinto, Vespeira, Azevedo, por exemplo, faziam-no – quer dizer, atravessavam sem preconceitos essas barricadas – nas duas direcções.
Artur Bual não pertencia a nenhum desses grupos. Quadros seus foram admitidos no I Salão de Arte Abstracta que a Galeria de Março abriu em Abril de 1954, mas a sua pintura não tinha ainda encontrado um rumo próprio: o Abstraccionismo, conquanto provável no seu horizonte, não constituía senão uma tendência.
Com efeito, o jovem Bual não havia assumido ainda, nesse já longínquo começo dos anos 50, qualquer filiação estética especialmente nominável, e quanto à sua posição em face da questão do momento – que era ser figurativo ou não figurativo – não tinha opção, isto é, não rejeitava tanto como não se submetia à representação do real. O que, na verdade, a sua pintura desse tempo já tendia a representar (isso o ia levar, justamente, ao gestualismo) era o próprio acto (o gesto) de pintar.
Entretanto, quadros seus iam sendo vistos nas principais “colectivas” da época, como as famosas
Exposições Gerais de Artes Plásticas da Sociedade Nacional de Belas Artes., várias exposições da Galeria Pórtico, a histórica I Exposição de Artes Plásticas da Fundação Calouste Gulbenkian, etc.. Até que em 1958 é exibido, no I Salão de Arte Moderna da Sociedade Nacional de Belas Artes, o seu primeiro quadro gestual.
Esse quadro evidenciou-se entre os melhores ali expostos, dos quais se distinguia pelo seu ineditismo ao panorama artístico português, onde “os grupos adstritos aos jovens pintores” ainda procuravam comprovar o Abstraccionismo pela “razão primogénita da espécie”, isto é, folheando (estou a citar Cesariny) álbuns de Klee, Kandinsky, etc., e, “em casos mais desesperados”, de Malevitch e Mondrian, todos já iluminados pela luz perpétua da história.
Numa crítica àquele Salão em que fora exposto a primeira pintura gestual de Artur Bual, J.-A. França salientava a “coragem de navegar no mar alto” que o jovem pintor revelava com a sua nova maneira e apontava ao mesmo tempo o que a distinguia (a essa maneira) no conjunto do Salão , a saber: “um expressionismo cuja potência cenográfica se encontra[va ] com a de uma corrente não figurativa de génese americana e pouca compreensão europeia”.
Essa corrente americana era o expressionismo abstracto que tinha, por sua vez, génese europeia (em Hartung, Wols, Soulages, por exemplo), mas havia adquirido grande relevo na América com Tobey, Kline, Pollock, entre outros.
Bual, se não fosse português, ou se o Chiado fosse um bairro de Paris, Londres ou Nova Iorque, seria citado nas Histórias de Arte junto destes artistas, e, apesar de muito mais novo, certamente não em último lugar…
EDUÍNO DE JESUS
Exposição Evocativa do 85 Aniversário do seu nascimento Municipal da Amadora: Galeria Municipal Artur Bual (3 de setembro a 16 de outubro 2011.
Fontes, pintura:
1. Pintura de Eduino de Jesus da capa de Os Silos do Silêncio:Poesia(1948-2004). Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2005.
2. http://asfolhasardem.files.wordpress.com/2009/05/natalia-correia-por-bual.jpg
3. http://images.arcadja.com/bual_artur-paisagem~300~10989_20100317_228_301.jpg