C o r p u s C h r i s t i
Mário Cabral, Casa das Tramoias, Semana Santa 2012
Calçava e descalçava os sapatos rotos com os próprios sapatos rotos. Como não usava meias, viam-se as marcas do cieiro a invadir como pulgas os pés até aos tornozelos. Parecia que a tinham pendurado numa corda juntamente com outras peças de roupa. Baixa e franzina, a agilidade com que virava a cabeça para mim e para o lado direito não correspondia à velhice evidente do rosto. Que temia, ou de que tinha vergonha? Talvez alegria… Não fui capaz de decidir-me acerca do sentimento projetado por aqueles olhos vivos de donzela, melhor, de animal encurralado.
Estava em vias de receber a pensão no moderníssimo balcão dos correios, restaurados de pouco. É sempre assim nos últimos dias dos meses: filas intermináveis de reformados e pessoal do rendimento mínimo, cujo entusiasmo se compara ao de crianças. O correio é intolerável nestes dias. As pessoas-contas-de-rosário chegam a ultrapassar a porta de entrada do edifício, chegam a sair do alpendre e a conquistar o passeio da rua. Quase sempre vou à caixa de venda automática de selos, depois de ter desistido de apresentar por escrito no livro amarelo outras soluções mais consentâneas com o nosso começo de milénio. Porém, desta vez, como em quase todas, a máquina estava “Fora de serviço”(quando não está fora de serviço sou eu que não tenho moedas). Nem um parágrafo li do livro que continuava aberto nas minhas mãos apenas para disfarçar o interesse perverso e indiscreto pela velha à minha frente.
Ao colocar as mãos acima do nível dos olhos apercebeu-se que tinha as unhas pretas de esterco. Com a mesma rapidez dos gestos do pescoço e dos olhos, limpou com uma das unhas as outras unhas e depois a limpadora com uma das já limpas.
– Não te esqueças de mim.
Ou:
– Diz que estou aqui, se houver problema.
Ou talvez:
– Tens contigo o meu recibo?
Não sei ao certo o que disse a outra. Por fim, estavam explicados os movimentos de cabeça para o lado direito. A outra velha estava de pé ao lado de uma das secretariazitas de parede, onde é suposto fechar-se os envelopes, escrever-se os endereços à última da hora, estas coisas. Vestia um casaco de falsas peles, dantes branco, e que resultava absolutamente ridículo nela, como se fora uma caricatura carnavalesca. A partir desta segunda velha, a primeira ganhava outra dimensão: dir-se-iam senhora e criada ou relação análoga, do género amiga rica/amiga pobre, amiga da cidade/amiga das freguesias que admira e inveja o chique da amiga cosmopolita. Vamos supor, para este efeito, que a velha à minha frente era a criada saloia da outra.
A criada saloia da senhora outrora rica não lhe respondeu porque a funcionária dos correios acabara de estender-lhe com muda familiaridade uma almofadinha de tinta, onde ela molhou o indicador direito para carimbar o recibo. Limpou o dedo na saia rota. Não me lembro de as ver sair.
Distraí-me com a entrada da Amália Rodrigues. Todos o conhecem na cidade, já ninguém se apercebe da aristocracia do porte; é apenas mais uma bicha louca das ilhas de baixo. Mas eu sou incapaz de não me arrepiar com esta investida torpe do sagrado primitivo na pseudomodernidade da cidade de província. Com a cabeça assim atirada para trás não vê a máquina das senhas. Anda devagar, equilibrando-se a custo nos saltos altos, e avança sempre a cantar, com as mãos em cruz de Santo André a aguentar o xaile, onde descansam, por fim, os longos brincos: “Não sei, não sabe ninguém/Porque canto o fado neste tom magoado/ De dor e de pranto/E neste tormento, toda sofrimento…” Atrás dos óculos do sol à anos 70, de lentes azuis, vê-se que tem os olhos borrados e cílios postiços.
Algo de sublime me atrai na miséria e na decadência, quando a vaidade dos códigos sociais desce ao grotesco, ou então a um grau de animalidade próxima daquele que ainda reside na pureza infantil, e até aos primeiros anos da adolescência, ou seja, quando a Natureza vence a cultura. Procurei uma folha branca no final do livro para escrevinhar o esboço do poema que acabo de passar ao computador:
Invejo os que são capazes de autodesprezo
Que não fazem a barba nem se lavam
Não usam cinto se esquecem de atar os sapatos
Fumam e bebem e de outros modos se maltratam –
Em seus olhos navega uma criança afogada.
Cristo veio de propósito para estes que
Não se contentam com um sentido qualquer:
Não se conformam à Natureza e desconfiam da razão social.
Hão de escutar na justa medida
A missa em mi menor de Bruckner
E serão os únicos a proclamar: “Só a fé nos salva”.
Para eles, só para eles, se abrem no Céu
Júbilos sem fim, alucinações eternas.
Duvido que as pensionistas do correio soubessem apreciar a missa em mi menor de Bruckner. A velha do falso casaco de peles branco sujo esforçava-se por imitar a classe à qual pertencera, por hipótese. Havia soberba tola no porte altivo dela, a única a não se dar conta da triste figura que fazia. Quem sabe se o tal sentimento misterioso dos olhos da outra não seria escárnio saloio? Certa vez, a Amália Rodrigues atravessou a igreja da Conceição em pleno ato de Consagração, mimetizando o senhor padre do lado de cá do altar.
A Maria, que estudou comigo no liceu e que fez um casamento infortunado, também está semilouca : “Quando o meu homem chegar, isto”, “Quando o meu homem chegar, aquilo”. Coitada! Ele fugiu com a amante para a América. Toda a gente sabe que não voltará. Manda-lhe de lá algum dinheiro para o sustento da casa e a criação dos filhos. Vejo-a sempre carregada de sacos plásticos, a pedir desculpas pelo pagamento em atraso na venda, no talho, eu sei lá! O dono da venda sabe que o marido não voltará, o dono do talho sabe que o marido não voltará…
– Mas não aguento mais do que um quarto de hora a olhar para eles cheio de compaixão, a verdade é esta. – concluo, depois de ter contado estes episódios num jantar em casa do meu amigo, o senhor diretor dos serviços sociais: – Morro de vergonha de mim mesmo, mas esta é a verdade. Sou um snob, a verdade é esta.
– Rabo-de-Peixe não tem nada a ver com nada da realidade açoriana. Ali é outro mundo. A primeira vez que lá fui, ainda na qualidade de sociólogo, senti pavor com as crianças que, li-te-ral-men-te – e o meu amigo acentuava pausadamente este advérbio de modo: – se atiravam para cima dos carros. Medonho! Medonho! Não há explicação para aquilo! As mulheres passam os dias sentadas às portas, as crianças nuas aos magotes pelos caminhos… Também, pudera!, as casa mais parecem currais, sem o mínimo de condições. E depois reproduzem-se, reproduzem-se, reproduzem-se! Imaginem só o que até há bem pouco tempo servia de quarto de banho àquela gente?! O sótão! Os bombeiros entraram lá de botas de borracha e pás!
Estava connosco a duquesa da Terceira. É o mais alto apuro civilizacional incarnado. Para chegar a este nível de requinte, uma família tem de possuir pelo menos cinco séculos de tradição dentro do mesmo solar. Todavia, o burilamento artístico da alma desta mulher de eleição é a custo reconhecido pela burguesia reinante, que lhe despreza a atração pela indigência. Com efeito, somos das suas poucas relações que se não drogam ou bebem ou vivem noutra espécie de vereda socialmente proibida ou indesejada. Ela esteve no baile que a Humanidade deu no último terraço da torre de Babel e não apreciou. Quanto da sua descida é amor verdadeiro? Quanto de provocação? Quanto de filistinismo?
“Mataiotés mataiotátón, ta panda mataiótés”. É das poucas frases que sei dizer em Grego. “Vanitas vanitatum, omnia vanitas”. “Vaidade das vaidades, diz Coélet, tudo é vaidade”. Ensinou-me um grande amigo, nas aulas de mestrado, à revelia de um seminário aborrecido. Repetiu e repetiu e repetiu… Acabei de o convidar para a Ceia Grande, que é costume das ilhas para o jantar de Quinta-feira Santa, mimando a última refeição do Salvador. É do Porto, onde não há esta tradição, mas seja como for está sozinho e é dia de festa:
– Minha irmã voltou a falhar os seus folares. Tornaram a ficar rasos como bolachas. Não sei quando é que vai admitir que as mulheres morreram no século passado.
– Se não te ofenderes, preferiria ficar em casa, sozinho com o Onassis – Onassis é o nome do cão deste meu amigo, apaixonado por Maria Callas: – Não tenho andado muito bem e temo não ser boa companhia para ninguém. Qual o motivo da minha tristeza profunda? Eu próprio não sei… Este ano não tem sido lá grande coisa. Não me apetece estar com ninguém, ser visto por ninguém… Nem sei o que dizer… Desculpa-me, sim?
– Não há problema! Põe-te a ouvir Händel – este meu amigo é melómano.
– Não tenho feito outra coisa. Ah, a propósito: tens visto o Corpus Christi? Está a dar na RTP-Açores, no Canal 2 e no Arte. Muito sério, só gente das melhores universidades. O Evangelho de João contrastado com os sinóticos. Interessantíssimo! Parece que as investigações mais recentes são peremtórias quanto à existência histórica de Jesus Cristo. Recebeste o meu postal?
– Tenho visto, sim. Com o maior dos interesses. Aliás, também li uma referência de Ricœur feita numa entrevista dada à última Lire. Queixava-se da montagem, que fraciona o discurso dos intervenientes, para além de não apresentar os pressupostos deles; e referia também como defeito o acentuar do antisemitismo tardio, sem qualquer referência à geração precedente, a de S. Paulo, para ser mais exato.
– Recebeste o meu postal?
Recebi. O postal representa uma nossa Senhora no Calvário, pintura do século XVI, escola de Colónia, pertença do Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa. O José-Maria gravou nele a seguinte mensagem:
Páscoa 2001
Meu querido Mário:
Em Angra, como sabes, são estreitos e sinuosos os caminhos
que levam à Memória…
Por isso faço votos de uma
BOA PÁSCOA!
José-Mª.
Ouço uns berros ao fechar o telemóvel, como se fossem uivos altíssimos de um animal acossado. “Pai, Pai, afasta de mim este cálice!” É a raiva de um trabalhador surdo-mudo com o qual os outros tecem durante toda a jornada de trabalho. Estão a construir atrás de minha casa um convento para as Criaditas dos Pobres, que se desculpam escandalizadas da beleza arquitetónica que nasce virada para o meu jardim: “Nós não queríamos esta sumptuosidade, não tem nada a ver com o espírito da nossa missão!”
Tivemos uma surda-muda na família, a Fátima, prima direita de minha Mãe. Já morreu, mesmo assim depois da tia Georgina, que muito rezou a Deus pedindo que a levasse antes dela, pois “Que será desta pobre de Cristo sem mim para cuidar dela?” A tia Georgina fez-se beata depois de viúva, embora refiram as más línguas uma certa leviandade enquanto o tio foi vivo. A Fátima tinha, como é costume em muitos casos de anormalidade (toda a vida ouvi dizer: “Os tolos só pensam nisto!”), uma grande apetência sexual e era um trabalho de Hércules aguentá-la dentro dos limites da nossa conduta medieval. Entendíamo-nos na perfeição com a linguagem gestual. Morreu no Canadá, para onde foi depois da morte da tia Georgina. Os irmãos cansaram-se do seu mau génio e internaram-na num destes lares de idosos muito convenientes para a vida moderna.
Continuo com o telemóvel fechado entre as mãos postas, como se fosse um terço. Olho pela grande janela que dá para o jardim, onde a Primavera se anuncia nos cachos roxos perfumados da latada de glicínias. Fecho mecanicamente o computador, seguindo as ordens das caixas de texto.
Mário Cabral Natural da Terceira, Açores é professor no liceu de Angra. É Doutor em Filosofia Portuguesa Contemporânea, pela Universidade de Lisboa, com Via Sapientiae – Da Filosofia à Santidade, ensaio publicado pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda (2008). Para além do ensaio, publica poesia e romance. O seu último livro de ficção (O Acidente, Porto: Campo das Letras) ganhou o prémio John dos Passos para o melhor romance publicado em Portugal em 2007. Está traduzido em inglês, castelhano e letão. Também é pintor.