Caleidoscópio Da Guerra Colonial Da Guiné
Memórias Dos Lugares Onde Estive Com O João Carlos Na Guiné é uma publicação da autoria de Maria João feita pelo Natal de 2012. O objectivo da autora: “Resolvi então deixar brotar estas minhas memórias, como testemunho para os meus netos, dos ‘lugares’, referências identitárias, relacionais e históricas por que passei nos anos de 1966/1968 na guerra colonial da Guiné.” João Carlos Gomes Pedro, médico pediatra e professor catedrático da Universidade de Lisboa, foi, por muitos meses, o médico militar da Companhia de Caçadores 1548 (a minha Companhia) destacada na localidade de Cuntima, no Norte da Guiné. Maria João Gomes Pedro, Educadora, acompanhou o seu marido durante toda a comissão. Ambos foram diapasão de bom som e impacto na vida militar e civil de Cuntima. Deixaram amigos e saudades. Tenho o privilégio de lhes chamar amigos. Temo-nos visitado, convivido e correspondido.
Poucos meses depois de ter passado à desmobilização, a 3 de Fevereiro de 1968, emigrei para os Estados Unidos. Esqueci-me então da primeira guerra. Agora, com a leitura do livro da Maria João, avivou-se-me a memória. Para além da guerra, lembro-me da camaradagem e fortes laços de amizade estabelecidos e sedimentados em chão plantado de minas e em ares cruzados por balas inimigas. Assim, a origem destas linhas.
Na Primavera do ano de 1966, o navio Uíje atraca à doca da baía de Bissau. Não éramos turistas. Desembarcamos como homens de guerra. Pisamos terra desconhecida; num primeiro sinal, notamos que o trajo da mulher era diferente: pano traçado à cintura e busto nu. Na manhã do dia seguinte, já na Fortaleza da Amura, as barras de manteiga derretidas no manteigueiro testemunhavam um clima tropical. A geografia do país aprendeu-se num contexto militar – emboscadas arriscadas, resistência do inimigo e número de casualidades. Na zona de Teixeira Pinto, em missão de apoio, iniciamos o nosso baptismo de fogo. Capitães mais sofisticados falavam de técnicas de guerra através dos tempos. Discutia-se a política do PAIGC, da FLING e da UNGP. (Lembro-me de um tal capitão Fontão). Cautelosamente, duvidava-se do sucesso do exército português.
Ao fim de mês e meio, a minha Companhia (CC. 1548) é destacada para Cuntima, sector de Farim, a passos do Senegal. Os habitantes desta vila eram muçulmanos que pertenciam à raça fula e praticavam a poligamia numa perspectiva de tons pragmáticos. Uma vez, ouvi uma mulher recém-casada explicar que estava ansiosa para que o marido tivesse uma outra consorcia para a aliviar das tarefas da casa. De resto, a jovem guineense não escondia a sua sexualidade.
Abrigos, feitos de troncos de árvores, protegiam o nosso aquartelamento e o povoado. O céu, como diziam os pilotos, era de tecto baixo. O horizonte, limitado pelo arame farpado, terminava logo ali. Por entremeio, havia uma pista de relvado onde aterravam avionetas e helicópteros. Mais ao lado, vacas magras procuravam migalha de erva seca. O terreno era avermelhado e as montanhas inexistentes.
Depressa, nos apercebemos da vida da tabanca. Ainda no lusco-fusco da manhã, um grupo de mulheres, em som rítmico, descascava o arroz no pilão. Mais tarde, a mulher grande ia para a bolanha cultivar o arroz. E o homem grande baloiçava-se na rede a comer mancarra. Crianças nuas ou seminuas brincavam, sem brinquedos, à volta das suas moranças, na escuridão do analfabetismo. Algumas mulheres transportavam água, em cabaças, para a higiene matinal feita ao lado de fora da moradia; outras, lavavam roupa e coziam o arroz. – Num ritual que se repetia na manhã de cada dia, os nativos começavam a amontoar-se em frente do posto clínico para uma consulta com o médico militar. A esta gente juntava-se mais gente vinda do Senegal. Todos queriam uma mezinha. O médico, por sua vez, com recursos limitados, só podia atender a um certo número de pessoas.
O chefe do posto e o chefe da tabanca mantinham-se atentos à infiltração de elementos estranhos. No caso de suspeita, o capitão juntava-se à equipa. Num processo de informação e contra-informação iniciavam-se os interrogatórios assistidos por um intérprete. Colhiam-se mais suspeitas que certezas. No meio de tudo, a guerra era inevitável.
Á distancia, em andar pausado, avistava-se o cifra da companhia que se supunha levar mensagem secreta; eram ordens vindas do Comando do Batalhão para mais uma operação militar. Havia notícia que os turras passariam no corredor de Jumbembem, em missão de abastecimento a acampamento inimigo. Principiava o frenesim. Uma da manhã. Capitão e alferes reuniam-se na sala de operações. Sobre a mesa iluminada pela luz do Petromax, abriam-se os mapas e planeava-se a estratégia de ataque. Sairão três pelotões, reforçados pelas milícias, comandados pelo alferes Chaves. (O capitão, um daqueles que havia metido o chico, reserva-se o direito de ficar no quartel. Cabrão! Resmungam os soldados). Tudo a postes. Espingarda G-3, morteiros, serviços de comunicação e enfermagem; não esquecer a maca. Levantar às quatro da manhã e sair às cinco. Os soldados levantam-se sonolentos. Fazem fila indiana em frente do caldeirão do café; tomam um naco de pão e uma nica de manteiga. Na parada do quartel, sente-se um murmurinho, no alvor da manhã, de mais um dia incerto. Arma às costas, cartucheira, ração de combate e cantil à cintura. À frente, vão os guias nativos. No meio da coluna, em cumprimento dos compêndios de Mafra, vai o alferes comandante. Caminha-se na escuridão da densa mata. Atravessam-se rios. Os guias hesitam se devem prosseguir caminho ou não porque encontraram uma cobra que pode ser prenúncio de má sorte. A conversa exausta do alferes convence-os a continuar marcha. Chega-se ao objectivo. O alferes dá ordem de fogo. Prostrados no chão, em terreno aberto, ou protegidos por uma árvore ou por um monte de baga-baga, pacientemente construído por formigas, começa o tiroteio. Os morteiros roncam, as Gs-3 sibilam e as granadas explodem. Os minutos parecem horas. As armas calam-se. O fogo acaba. Há um ferido. Começa a retirada. Chama-se helicóptero que tarda em chegar. Morre um soldado branco. O pessoal da tabanca expressa o seu pesar. A tropa enche-se de luto; o estilhaço certeiro da granada podia ter atingido qualquer um. No dia seguinte, um major do Batalhão exalta o sucesso da operação: apenas se perdeu um homem! No entretanto, forma-se coluna militar e transporta-se o soldado morto e a sua mala para Farim, de onde seguirá para Bissau, para se preparar o corpo com rumo à família.
A vida militar, a tabanca, o mato e a guerra continuariam no dia seguinte. A quebrar-lhe a monotonia, havia a chegada eventual do helicóptero. Todos os ouvidos sintonizavam com o seu som ainda distante. Os olhos confirmavam a aproximação. É que o momento mais esperado pelas tropas era o da chegada do correio. Após a distribuição das cartas ou aerogramas, cada soldado, absorvido na leitura dos mesmos, era uma estátua de saudade plantada em cada canto do quartel.
As noites consumiam-se num jogo de cartas, em conversa que oscilava entre a guerra, a família e os bons tempos na terra natal. Bebia-se uma cerveja ou tomava-se um whiskey. Os frigoríficos, amarelecidos pelo tempo, continuavam no seu labor de fazer gelo. As ventoinhas giravam na tarefa inalcançável de produzir ar fresco. A hora do recolher aproximava-se na incerteza de uma noite tranquila. A G-3 era companheira inseparável. O mosquiteiro protegia-nos de um outro inimigo. Teimava-se com o sono na busca de algum sossego.
Alexandre Magno fez-se acompanhar de escritores que narrassem as suas façanhas heróicas. Muitos dos nossos escritores estiveram na guerra, viram-na in loco e narram-na sob diferentes aspectos. Álamo de Oliveira, em Até Hoje (Memórias De Cão), descreve o tormento de um soldado que acaba de regressar da guerra, na Guiné: “João sente-se naufragar nesse pesado oceano de sangue e
a angústia do vómito que lhe aperta a garganta fá-lo expelir um grito todo medonho, trovejante, intensamente louco. <
Legenda Fotos:
Cuntima1: Jovem senegalesa procura consulta médica no Posto Clínico Militar de Cuntima (1967)
Cuntima2: Um aspecto da Tabanca de Cuntima. (Abril de 1967).
Cuntima3: O pilar do arroz. Cuntima, (Julho de 1966)
Nota:Sobre o autor NUNO A. VIEIRA:
Natural da Ilha das Flores, Açores,1942. Emigrou para os Estados Unidos em 1968 e aí construiu sua família e sua vida acdêmica.É professor de Espanhol, Latim e Português em Universidades do estado e particulares,na área de Boston. Nos últimos anos, tem sido uma presença constante nos jornais Portuguese Times (New Bedford), A União (Terceira), Sol Português (Toronto), As Flores (Ilha das Flores) e na revista Atlântida com a publicação de inúmeros artigos.
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