Caminhos abrem a ilha ao mundo
Em menino, aprendi que os livros são uma caixa preciosa onde se guardam memórias. As letras, de que brotam palavras, são a chave que abre este mundo encantado. E ao abrir-se o livro-caixa mágica, ganha vida o mundo de quem escreveu. Ler torna-se, assim, uma viagem pelos meandros da interioridade do escritor.
Em Caminho(s) que Trilharam José Cabral abre-nos a porta a muito mais do que um terreiro das recordações. Leva-nos a uma ilha, viva, que desemboca no Mundo por mares de lusofonia e pontes de criolidade. E ao leitor que se aventura, Cabral presenteia com uma visão de síntese histórica, numa bem urdida trama vivencial em que a jornada pessoal e íntima de Carlos se torna numa caminhada coletiva, tantas vezes percorrida. Por estes Caminho(s) a aldeia cresce global, o local abre-se ao universal, a ilha torna-se mundo.
Caminho(s) que Trilharam é um retrato que define, com nitidez e profundidade, a natureza migrante do SER cabo-verdiano. Aqui se partilham as dores do limbo, dum estar a meio entre a ilha mátria de onde, fisicamente, se parte e as américas do sonho a que se nunca chega. Mas esta é uma partida identitária, irreversível e sem regresso; é que tal como não se pode regressar ao tempo-espaço donde se partiu, porque o tempo é outro e o lugar mudou, idiossincraticamente também não se pode regressar a donde nunca se partiu.
Por isso, estes são Caminho(s) de revisitação num roteiro de viagem – que não no tempo, mas ao interior – em que os acontecimentos vivem enxertados entre a memória emocional e a factualidade. Esta duplicidade está presente na esquina de cada página, viagem constante entre o ser e o estar, entre o nome e o circunstancial. Mas subjacente a esta espacialidade há uma outra. Uma matrix distante, mas omnipresente, algures entre Mãe África e a Ancestral Europa na deriva desta rota viva que somos, Jangada de Pedra perpetuada em cada um de nós, cada vez mais longe e sempre aqui tão perto. É que ao separar-nos em ilhas, o cataclismo cósmico fez-nos unidos pelo mar. Mas não é esta a natureza última da Macaronésia?
Caminho(s) que Trilharam é também diário de bordo num roteiro de viagem entre o mundo fantástico da Atlântida-do-Sul e a crua realidade de São Nicolau/Ilha Bela. Desta viagem ao contrário – que a ilha é âmago, centro do mundo, cais de todas as partidas – nasce uma escrita pintada a emoção em tela de trama sociológica. Enveredar por estes Caminho(s) é descobrir um mundo que ganha vida na construção fílmica duma narrativa detalhada, que nos leva a ser testemunhas participantes duma viagem sem fim. É partir da ilha para chegar a outros Cabos Verdes, embalados na corrente de morabeza que nasce no canal patchê-vicentinu e se ramifica por portons di nôs idja em Itália, Holanda, Portugal, Ucrânia, Brasil e América. Passo a passo, ao longo destes Caminho(s) surge uma geografia da emocionalidade crioula, onde a vívida descrição dos ambientes diaspóricos nos leva pelas rotas migratórias dum arquipélago de ilhas étnicas, desenhando a nação caboverdiana num mapa mund d’ sodadi.
Mesmo sabendo como é difícil chegar a S. Nicolau a ilha vive de lonjura, cerrada de encantamento, suspensa no horizonte – José Cabral convida-nos. E tal como Baltazar Lopes fez um barco de papel, a que chamou de Chiquinho, para levar Cabo Verde ao Mundo, aqui é um compagnon de route que partilha Caminho(s) pela mesma rota. E tal como se fora uma viagem pelos desfiladeiros e veredas de Saniclau, este livro leva-nos à surpresa da descoberta num relato saboroso que se degusta como encomenda da terra.
Pedro Mar
Washington, Jan/2015