RITUAL POÉTICO
Vestiste a ausência
E tomaste as armas brancas
da acusação …
Como um rio deslizaste
E nos teus lábios havia o delta
De um futuro olvidado
Como se eu tivesse mordido
A maçã do esquecimento.
Abrir as portas da noite
seria a esperança,
O absurdo vago do passo perdido;
Mais valia rasgar o ventre
da verdade
Ao fogo do dia
E não deslizar como a água
E não cantar como o vento
Que o som das pegadas
Se afastou na lonjura do caminho…
Entender o verbo e a palavra
É entender a cabala dos olhos perdidos,
O gesto hermético do mover dos dedos,
A penumbra da alma que a luz não viu.
O sentido daquele que escreveu na água
não importa;
Tudo é o gesto nostálgico e cansado
De quem bateu à mesma porta.
Nem sempre o sonho antigo –
o novo sonho;
Nem sempre a água do rio –
¬a mesma água…
Mas talvez a boca da nascente
Tenha sempre a vaga tonalidade
à luz do dia,
O mesmo rito que faz nascer a morte,
O mesmo rito que faz morrer a vida…
– Entender tudo isto
é entender a cabala
Dos olhos perdidos
no ritual poético.
Manuel Cândido,
Ritual poético, Vila Franca do Campo, Ed. Ilha Nova, 1984.